O
que há de exclusivo do sábado santo com relação à vivência dos sofrimentos da
sexta-feira santa é o elemento contemplativo objetivo e passivo ou conforme as
palavras citadas de Nicolau de Cusa, a visão da morte.
Neste
momento, Cristo é contado entre os fracos. Não há batalha contra forças do
inferno, nem triunfo subjetivo, pois este supõe como já dissemos força e
vitalidade. Entretanto, esta fraqueza é o objeto de sua visão, ou seja, da
segunda morte. Em si mesma, esta fraqueza é
A paixão do infinitamente puro, do infinitamente
justo por tudo aquilo que a Deus aborrece e que só ao Puro aparece em toda sua
fealdade; é o sofrimento por representação deste Puro por todos os impuros,
isto é: o tormento daquela angústia que caberia em sorte ao pecador, diante do
tribunal de Deus Juiz.[1]
Nesse estado, o pecado não tem forma
e é provocado pela liberdade humana, ou mais precisamente o produto da Paixão
ativa na cruz. Neste sentido, o objeto contemplado pelo Redentor morto é o seu
próprio triunfo e somente no esvaziamento vital é que Ele pode ter este contato
íntimo. “no inferno povoado não poderia
ser objeto desta Visio mortis, pois ela seria a contemplação de uma derrota,
nem um purgatório povoado [...] mas a pura substancialidade do inferno enquanto
é o pecado em si.” [2]
Ali é inútil procurar
o Pai porque isto é contraditório, tanto mais que o tempo desapareceu. Não há
passado ou futuro. Só há solidão cuja substancia é o pecado anônimo. Não há
comunidade possível, nem esperança. Só há constatação puramente objetiva
daquilo que é o pecado do mundo em sua monstruosidade. E aquele que constata
não sabe que é, nem se existe, propriamente falando. O eu torna-se isto devido ao fim das relações. Nada é
determinado mas, não obstante, o isto se torna nada.
À pergunta sobre a essência do pecado permanece pois no pecado não há verdade,
nem existência. Suportar isso é o puro horror que cria um pavor inominável;
este horror está presente no pecado e no pecador. O salvador o carrega em si
sem ser este horror. Na verdade, o contato com o horror, faz com que Ele
reconheça o que o separa do horror, ou seja, vê a forma de sua missão na
obscuridade do Pai. A
partir desta concepção, o inferno “é um
produto da Redenção e deve ser contemplado pelo Redentor apenas em sua
substância, a fim de se tornar, em sua pura rejeição uma coisa que lhe
pertence: aquilo sobre o qual recebeu o poder das chaves, no momento de sua
Ressurreição.”[3]
Voltaríamos
a uma concepção mitológica se admitirmos descrições dramáticas do inferno, como
aquele da teoria do resgate, em suas expressões teológicas mais grosseiras ou
mais sutis.
3.3.3.
ACONTECIMENTO TRINITÁRIO
Esta estadia de Jesus entre os mortos, chamada por H. U. von Balthasar
de Solidariedade encontra o seu fundamento no Pai e por conseguinte é a última
conseqüência da missão do Filho. O Deus criador assumiu a responsabilidade pela
liberdade do homem criado e é necessário explicitar que
Se
o Pai deve ser considerado criador da liberdade humana – com todas as
conseqüências previsíveis - então originalmente o juízo lhe pertence e,
conseqüentemente, o inferno, e se Ele enviou seu Filho ao mundo para salvar e
não para condenar, e se, para esta função,
lhe entregou todo o julgamento (Jo5,22), então Ele devia, introduzi-lo
também no inferno. Mas o Filho só foi introduzido realmente no inferno, como
morto, no sábado santo. Pressupunha-se esta introdução no inferno ‘se os mortos
deviam ouvir a voz do Filho de Deus e ouvindo-a viver’(Jo 5,25)[4]
Assim o estar com os mortos por
parte do Filho é um estar na extrema obediência e consiste na travessia
existencial do puro anti-Deus, do objeto do juízo escatológico. Este objeto é
apreendido no acontecimento do ‘ser impetuosamente projetado fora’ (Ap 18,21;
Jo 12,31; Mt 22,13). Esta travessia é
feita na extensão de toda missão recebida do Pai. Desta maneira, o mergulho no
inferno é um evento econômico trinitário, posto que:
Os
últimos abismos da liberdade contrária a Deus se abrem ali onde Deus, em sua
liberdade amorosa, se decide a descender kenóticamente à perdição do mundo,
pois é nesta descida que põe em descoberto àqueles: para si mesmo, porque
experimenta o abandono divino, e para o mundo, porque agora aprecia a este,
ante as dimensões do amor divino, o âmbito de sua própria liberdade, que pode
ser utilizada para contradizer a Deus. [5]
Em sua estadia no inferno, o Filho
observa tudo o que estava inacabado, o que era informe e caótico no âmbito da
criação, com o intuito de transferir, como salvador aos seus domínios, como diz
Santo Irineu: “por isso também desceu às
portas inferiores da terra, para ver com os olhos os seres inacabados da
criação”[6]. É por conta desta
visão que o homem Deus teve do caos que recebemos a condição de contemplarmos o
divino. Percorrendo o caos na obediência ao Pai, em meio às trevas do
anti-divino, objetivamente, Ele se encontra no paraíso e quando pensava mais abandonado pelo Pai, é que o abandono
é usado para romper as algemas do verdadeiro abandono do inferno, e para fazer
entrar o Filho, acompanhado do mundo libertado, no céu do Pai. Justamente é
esta idéia que se expressa figurativamente nos textos Patrísticos que falam de
um triunfo.
[1] O Cristão e a Angústia. São Paulo: Duas cidades. 1963. pg. 49
[2] FEINER, Johannes & LÖHRER,
Magnus. Mysterium Salutis – Compêndio de
Dogmática Histórica Salvífica. Vol.
III/6: Mysterium Paschale, Colaboração
de Hans Urs von Balthasar. Petrópolis: Vozes, 1974. pg.118
[3] Idem. pg 112
[4] Idem. pg 119
[5] BALTHASAR, Hans Urs Von, Solo el Amor es digno de fe. p.83 [.
Los últimos abismos de la libertad contraria a Dios se abren allí donde Dios,
en su libertad amorosa, se decide a descender kenóticamente a la perdición del
mundo, pues en este descenso es cuando ponde en descubierto a aquéllos: para sí
mismo, porque experimenta el abandono divino, y para el mundo, porque ahora
aprecia éste , ante las dimensiones del amor divino, el ámbito de sua propia
libertad, que puede ser utilizada para contradicer a Dios.]
[6] IRINEU, Santo. Contra as heresias. São Paulo: Paulus,
2006. Livro V
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