Depois de trazer trechos da Igreja da Eucaristia de São João Paulo II, agora trazemos a contribuição de Benedito Ferraro.
“Bendito sejais, Senhor Deus do Universo, pelo pão e pelo vinho
que recebemos da vossa bondade, fruto da terra e da videira e do
trabalho do homem e da mulher, da cidade e do campo, que agora vos
apresentamos, e que para nós vão se tornar pão da vida e cálice da
salvação.”
1. Pão real: sustento da vida
Como diz a oração das oferendas, o pão e o vinho são frutos da terra e
do trabalho do homem e da mulher. Isso significa que neles há muito
trabalho incorporado. Há muita vida e muito suor: “A ideia de Jesus é
genial: reunir os homens e mulheres na unidade, partindo não das ideias,
mas da matéria. A força da unificação e conciliação dos homens e
mulheres, a energia oculta que nos une é Cristo, mas Cristo quer que
esta energia seja colhida e simbolizada no pão e no vinho. Porque o pão e
o vinho nos unem na mesa e são o símbolo desta união… E o pão e o vinho
significam que só podemos realizar a união através da produção.
O Pão
nasce da terra, mas para ser pão deve passar pela mediação do homem e da
mulher. O pão simboliza o produto indispensável à vida do homem e da
mulher e é aquele produto que mais precisa de mediação: do campo à
ceifa, à debulha, ao moinho, à panificação. São pelo menos quatro
mediações, sem levar em conta a distribuição. A Eucaristia nos lembra o
empenho de fazer comunhão entre nós passando pela produção” Seria longo sinalizar todas as mediações necessárias para a produção
do pão e do vinho. Mas é importante para compreendermos que o pão não é
apenas pão e o vinho não é vinho tão somente, mas sim frutos de relações
sociais. São, na verdade, a vida de nossos irmãos e irmãs incorporada
neles. Quantas pessoas estão engajadas em sua produção! Para pensarmos o
plantio, é necessário pensarmos a preparação da terra feita pelo
camponês(a), os instrumentos necessários para essa tarefa: a enxada, o
arado ou o trator. Esses, por sua vez, dependem dos que trabalharam nas
minas, colhendo o minério de ferro, em circunstâncias extremamente
perigosas, como também dos operários(as) que os produzem nas fábricas.
Normalmente, a colheita é feita pelos boias-frias, cuja vida de
sacrifícios conhecemos. Para chegar à cidade, o pão e o vinho necessitam
do transporte. Caminhoneiros que percorrem grandes distâncias,
enfrentando, a cada dia, os perigos de nossas estradas. Há ainda os que
trabalham na produção da farinha nas indústrias, os que trabalham nas
padarias e no comércio. Todo esse trabalho é realizado para que o pão e o
vinho possam estar em nossas mesas e também na mesa do altar. Para
ilustrarmos todo esse processo, recorremos ao esquema utilizado por E.
Dussel, que nos ajuda na compreensão de todo o trabalho incorporado na produção do pão e do vinho:
PÃO É VIDA
1. Ser humano: 2. Trabalho (ação) 3. Terra |
Sujeito de necessidades Matéria
|
5. Vida 4. Pão |
Consumo Produto
|
O ser humano — homem e mulher —, no trabalho cotidiano, busca o
sustento da vida diária, pois é um ser de necessidades. Seu trabalho
visa produzir o necessário para que a vida possa ser produzida e
reproduzida, através do consumo do fruto de seu trabalho. E como diz o
Eclesiastes: “Vejam: a felicidade do homem e da mulher está em comer e
beber, desfrutando o produto do seu trabalho… E compreendi também que é
dom de Deus que o homem e a mulher possam comer e beber, desfrutando do
produto de todo seu trabalho” (Ecl 2,24; 3,13). No entanto, quando o
homem e a mulher não podem usufruir o produto de seu trabalho, surge a
injustiça, que manifesta a quebra das relações de igualdade e impede que
a vida seja vivida na fraternidade de irmãos e irmãs, numa mesma casa,
cidade ou país.
2. O pão econômico e as relações sociais de trabalho
Quando, numa sociedade, há pessoas que não têm acesso ao produto de
seu trabalho, podemos questionar sua organização, pois essa desigualdade
revela a injustiça presente nas relações sociais. Ao negar o trabalho
aos trabalhadores(as), o pão não pode ser partilhado de modo fraterno,
pois o desemprego, se não mata, machuca demais. Quando a concentração da terra chega a níveis insuportáveis, como no Brasil, o pão não pode chegar à mesa de todos. Quando a indigência atinge 50 milhões de brasileiros,
o pão não pode estar presente na mesa de todos, como alimento que dá
sustento e alegria de viver. Essa realidade está em contradição
flagrante com a proposta de At 4,34: “Entre eles ninguém passava
necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam,
traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; depois, era
distribuído a cada um conforme a sua necessidade”.
O pão econômico explicita as relações de trabalho de uma sociedade.
No nosso caso, o pão econômico, mal partilhado, conforme as
estatísticas, revela que nossa sociedade, marcada pela desigualdade,
priva muitos do exercício da cidadania plena. Mostra que a exploração
continua imperando nas relações de trabalho, pois os que detêm o capital
acabam mantendo os que trabalham numa situação de dependência.
3. O pão econômico é o pão da Eucaristia
O mesmo pão que comemos na nossa casa está presente na mesa do altar.
Ele é fruto do trabalho do homem e da mulher, do campo e da cidade. O
pão e o vinho revelam que a economia é a base da liturgia: “Trata-se de
compreender a articulação entre o pão, fruto do trabalho comunitário dos
homens (e mulheres) e que se troca entre os produtores, e o pão,
matéria da oferta eucarística. Em um segundo nível de profundidade, é
preciso articular o pão do sacrifício com o próprio corpo do profeta que
se oferece na história nas lutas pela justiça, pela construção do
Reino. Pão do trabalho, pão da oferta, o corpo do mártir como pão
eucarístico. Isto é saber articular economia e eucaristia, a essência do
cristianismo”.
Numa sociedade em que a economia já não mais se preocupa com o bem
comum das pessoas, mas única e exclusivamente com o lucro, colocando a
produtividade e as leis de mercado como parâmetros absolutos, a Eucaristia deve se tornar um gesto profético em favor da justiça e da partilha. A Gaudium et Spes,
texto do Vaticano II, mostra que a economia deve estar a serviço das
pessoas e de toda a comunidade humana: “A finalidade fundamental da
produção não é o mero aumento de produtos, nem o lucro ou a dominação,
mas o serviço do homem e do homem completo, atendida a hierarquia das
exigências de sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de
todo homem, dizemos, de qualquer comunidade humana, sem distinção de
raça ou de região do mundo”.
Existe uma contradição entre o anúncio e a realidade. Muitas vezes,
proclamamos uma verdade, mas a prática cotidiana está longe de se tornar
verdadeira. Os bispos latino-americanos detectaram essa realidade, ao
afirmar: “Vemos, à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o
ser cristão, o abismo crescente entre ricos e pobres. O luxo de alguns
poucos converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas. Isto é
contrário ao plano do Criador e à honra que lhe é devida”. Essa mesma constatação é feita na Declaração Final do 14º Congresso Eucarístico Nacional: “Estivemos
reunidos em Campinas, irmãos e irmãs, vindos das diferentes regiões do
Brasil. Esta grande cidade do Sudeste acolheu-nos cordialmente.
Mostrou-nos seu grande potencial humano, financeiro e tecnológico, ao
mesmo tempo em que percebemos o clamor de cidadãos que sofrem, como,
aliás, em todo o país, brutais contrastes entre riqueza e miséria no
mesmo solo, na mesma família humana, na mesma mesa cristão.
3.1. A dimensão profética da Eucaristia na tradição bíblica
A tradição bíblica nos alerta para essa contradição e nos ajuda a
compreender que a Eucaristia assumida tem sempre uma dimensão profética,
que, muitas vezes, desemboca no martírio — como aconteceu com D. Oscar
Romero, ao buscar ser coerente com a vida dos pobres, em El Salvador. O
texto de Eclo 34,18-24, que serviu para a conversão de Bartolomeu de las
Casas, e o texto de 1Cor 11,17-32 servem como alerta, ainda hoje, para
todos os que se dizem cristãos. A Eucaristia é um sacramento, um
símbolo, mas deve se concretizar na vida concreta do dia a dia, para não
ter seu significado esvaziado: “O partilhar alimento e bebida uns com
os outros, a celebração duma refeição especialmente entre os que são
abastados e os que nada possuem, é essencial à celebração da refeição
eucarística cristã. A simbolização ritual do grupo cristão, do corpo de
Cristo, está ligada integralmente com a celebração duma refeição e com a
bem concreta participação de todos os cristãos à mesma mesa. O símbolo
central da associação cristã não é um código ou um lugar sagrado, não é
uma fórmula ou ação ritual, mas a bem concreta participação numa mesma
refeição em justiça e amor. A comunidade reunida ao redor da mesa do
Senhor deve superar suas estratificações e discriminações sociais.
Senão, torna-se culpada e responsável por ‘profanar’ a vida e morte do
seu Senhor… A condição essencial para celebrar a ‘ceia do Senhor’ não é o
rito cúltico, mas a partilha socioeclesial do alimento e da bebida.
Todos os cristãos devem ser capazes de participar em pé de igualdade da
mesa do único Corpo. Discriminações sociais destroem a comensalidade da
ceia do Senhor. A participação de todos os membros da associação cristã —
ricos e pobres, livres e escravos, homens e mulheres, judeus e gregos —
no único pão partido constitui o único corpo, a ecclesia. O
tornar-se Igreja, como também a ritualização simbólica da Igreja, não é
possível sem a igualdade na concreta participação à mesma mesa. Ora, uma
participação à mesma mesa em pé de igualdade requer que se abandonem as
discriminações sociais entre os que participam do corpo e do sangue de
Cristo. Não apenas as discussões e questões ‘eucarísticas’ dos
coríntios, mas também as nossas de hoje poderão adquirir novas dimensões
e impulsos teológicos, se novamente focalizarmos o caráter de refeição
que tem a eucaristia como elemento constitutivo da ritualização
simbólica da comunidade cristã, como também se trabalharmos por superar a
discriminação social e o preconceito social como precondição essencial”.
Essa é a grande contradição que continua presente em nosso meio e que
o 14º Congresso Eucarístico Nacional buscou denunciar em seu texto-base.
A Eucaristia supõe a convivência de irmãos e irmãs na mesma mesa. E
quando essa realidade não existe, a Eucaristia se torna, em cada
celebração, uma denúncia da realidade que impede que o pão seja
partilhado entre todos: “O pão nosso de cada dia nos dá hoje” (cf. Mt
9,11). A vontade de Deus, Pai-Mãe, expressa na prática de Jesus de
Nazaré, é a de que todos os seus filhos e filhas tenham vida plena (cf.
Jo 10,10).
3.2. Eucaristia e divisões na comunidade
No texto de 1Cor 11,17-32, encontramos o pensamento de Paulo que
critica a comunidade que não age de acordo com os preceitos do amor. Ela
acaba repetindo os erros presentes na sociedade: “O ato que devia ser
um sinal do festim do Reino perdia então todo o seu conteúdo. Tratava-se
de uma profanização da celebração da Eucaristia”.
Esse é um perigo constante que ronda nossas celebrações eucarísticas,
quando não há compromisso efetivo para transformar a realidade injusta
que impede a presença de todos como irmãos e irmãs na mesa comum. A
crítica aqui não é para os “de fora”, mas sim para os “de dentro”, para
aqueles que professam a mesma fé e acreditam na presença misteriosa de
Jesus no pão e no vinho, sinais visíveis da graça de Deus oferecida a
todos. O esquema utilizado por E. Dussel, refletindo o texto de Eclo
34,18-24, base da conversão de Bartolomeu de las Casas, pode nos ajudar
na compreensão desse desafio:
O PÃO DA ECONOMIA É O PÃO DA EUCARISTIA
O pão é fruto do trabalho do pobre. Tirar o pão do pobre e oferecê-lo
a Deus é, na verdade, como diz o texto bíblico, matar o filho na
presença do pai. Nesse sentido, a base da Eucaristia é a economia. Por
isso, toda Eucaristia celebrada deve apontar para a partilha real dos
bens, retomando hoje e sempre a experiência utópica das primeiras
comunidades cristãs (At 2,42-47; 4,32-35).
4. A modo de conclusão
A Eucaristia nos relembra o grande dom de amor que Jesus nos deixou
como sinal de sua presença no meio de nós. Sua vida foi toda perpassada
pela vivência eucarística: partilha do pão, compaixão pelos pobres,
acolhimento dos pecadores e doentes. Em seu testamento, ele disse:
“Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). O “isto” que Jesus pede que
façamos “abre-se para uma perspectiva exigente, oblativa, de doação
completa da vida. ‘Fazei isto’ significa celebrar o mistério
eucarístico, atualizar a memória de Jesus. ‘Fazei isto’ implica doar a
vida cotidianamente. ‘Fazei isto’ significa repartir o pão em todas as
suas dimensões e sentidos”.
A Eucaristia como fonte da missão e vida solidária indica o caminho
do compromisso para todos os cristãos e cristãs: transformar a sociedade
para que ela se torne casa comum de todos, onde todos e todas possam
ser acolhidos e incluídos como irmãos e irmãs ao redor da mesma mesa.
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