quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Gaudium et Spes e a dignidade da pessoa

Desejando construir um diálogo com o mundo, a Igreja coloca como premissa cristã que a dignidade de toda pessoa humana deriva da afirmação teológica de que homem e mulher foram criados à imagem de Deus e redimidos por Jesus Cristo (Gaudium et Spes 12/13). Nesta premissa se afirma que o ser humano é um ser uno, composto de corpo e alma, e que ambos são bons e dignos de respeito. Assim, a dignidade humana exige que o homem glorifique a Deus no seu corpo, não permitindo que este se escravize às más inclinações do próprio coração (GS14).

Partícipe da luz da inteligência divina, o homem passou a dominar o universo através das ciências, das técnicas e das artes, o que lhe permitiu grandes avanços na conquista do mundo material. Todavia, somente isto não lhe foi suficiente, pois sempre buscou e encontrou uma verdade mais profunda, que na linguagem cristã é conhecida como vocação, que é o chamado que Deus dirige a cada ser humano para que se realize enquanto pessoa no serviço ao próprio Deus, através do serviço aos irmãos (GS15). E,usando os dons que Deus lhes deu, são chamados a promover e a defender a vida. No fundo da consciência humana, o homem descobre e vive uma lei escrita pelo próprio Deus no seu coração, que o chama a viver o amor e a fugir do mal, que é a consciência moral.  Assim, a dignidade reside na singular consciência que Deus imprimiu em cada ser humano, que nem mesmo o pecado pode diminuir (GS16).

Uma das significativas afirmações deste primeiro capítulo é a liberdade humana. ‘Ela é um sinal divino oferecido por Deus que deixa o homem entregue à sua própria decisão, a fim de que proceda segundo a sua própria consciência e por livre adesão’ (GS17). Nesta afirmação, a Igreja, ao se colocar contra toda tentativa de controle de consciências, faz uma crítica às ideologias, especialmente aos governos totalitários que ainda se faziam presentes na Europa e em outros países. Na América Latina e especialmente no Brasil, a Igreja assumiu uma posição profética de defesa da consciência, da liberdade e da dignidade humana diante dos governos militares que perseguiram e mataram muitos civis defensores da democracia.

O Concílio ainda disse uma palavra sobre as muitas faces do ateísmo, presentes no mundo moderno, que tentam de todas as formas negar a importância da religião, afirmando que a autonomia humana deve ser plena, e os que o professam entendem que a liberdade consiste em que o homem seja o próprio fim e autor único da sua história, e pensam que isso é incompatível com o reconhecimento de Deus. Por isso, quando alcançam o poder, atacam violentamente a religião, difundindo o ateísmo também por meios de que dispõe o poder público, sobretudo na educação da juventude (GS20). Apesar de rejeitar o ateísmo, a Igreja espera que todos os homens, crentes e não crentes, contribuam para a construção do mundo no qual vivem, a partir de um prudente e sincero diálogo, deplorando qualquer tipo de discriminação (GS21).

Vemos, pois, neste texto, a abertura da Igreja que, diante de uma sociedade secularizada, conclama todos os “homens de boa vontade” – tal qual chamou João XXIII – para a transformação do mundo. Esta nova compreensão da ação da Igreja revela que ela deseja dialogar com a sociedade. Para a Igreja, agir e emprestar a voz para os que não têm voz, e chamar todas as pessoas, independentemente da religião, para transformar o mundo, deriva da fé no Espírito Santo que renova todas as coisas, e na certeza que a encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo ocorreram para que todos fossem salvos (GS22). Para a GS a vida humana está acima de tudo, pois, como afirma Santo Irineu, ‘A glória de Deus é o Homem vivo’‘[1].

Ao constatar que o progresso técnico não foi suficiente para intensificar o diálogo, o respeito nas relações e a comunhão entre os homens, e que a doutrina da Igreja pouco dissera sobre isso, o Concílio afirma que a Revelação cristã favorece a comunhão entre as pessoas e, ao mesmo tempo, leva a uma compreensão mais profunda das leis da vida social que o Criador inscreveu na natureza espiritual e moral do homem (GS23).

Dentro do contexto em que os estados modernos proclamaram a sua laicidade [2], e a Igreja reagiu defendo a presença do catolicismo como religião oficial nos vários países (especialmente no século XIX), a GS representa um novo olhar da Igreja sobre as sociedades civis e o Estado. Neste documento, os Bispos não reivindicam o retorno àcristandade, mas procuram sensibilizar os governos e as sociedades para promoverem o bem público. O exemplo mais significativo já foi apontado na ficha GS-01, quando o Papa Paulo VI se dirigiu à ONU dizendo que ele não se apresentava diante daquela assembleia como um chefe de Estado, o que ele também era, mas como um “técnico em humanidade!” [3], ou seja, ele destaca que a função da Igreja não é interferir na forma dos governos agirem, mas, enquanto uma sociedade dentre outras, manifestar a sua compreensão de mundo, de homem e de sociedade. 

Haveremos de lembrar que a LG definiu que a Igreja é composta pelo conjunto de batizados e que estes, enquanto membros do povo de Deus, são também parte da sociedade civil. Portanto, em razão de sua vocação batismal, cabe a cada um, a obrigação de tomar parte nos caminhos políticos desta mesma sociedade. A Igreja compreende que a vocação à comunidade é inerente ao ser humano, pois a vida tem origem em Deus que colocou, no coração dos homens e mulheres, a vocação de ser membro da família humana. Na nova Lei, Jesus ensinou que o amor a Deus não pode ser separado do amor ao próximo, e que todos os mandamentos se resumem em amar ao próximo como a si mesmo. No mandamento da unidade, ‘para que todos sejam um’ (Jo15), a Igreja interpreta que toda humanidade é chamada a assumir a responsabilidade social por tudo de bom e de ruim que acontece no mundo. Este empenho de todos em favor da família humana representa para a Igreja um sinal concreto da presença do Reino (GS24). Aqui, fica claro o importante significado da presença do Papa na ONU. 

Toda pessoa é chamada a participar das mais variadas instituições sociais com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento de outras pessoas e, também como membro, tem o direito de ser beneficiada pelas ações das respectivas instituições, o que ‘contribui para consolidar e desenvolver as qualidades das pessoas’ (GS25). Todavia, devido a problemas estruturais, econômicos, políticos, sociais e culturais, nem toda sociedade tem condições de oferecer a seus membros o que lhes é de direito. Estando a dignidade da pessoa acima de tudo, se torna necessário garantir iguais condições básicas para uma vida verdadeiramente humana, como: o alimento; o vestuário; a moradia; o direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família; o direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à informação; o direito de agir segundo as normas da própria consciência e à proteção da sua vida; e o direito à justa liberdade, mesmo em matéria religiosa. Se a ordem social está em função das pessoas, e não ao contrário, o Concílio lembra que ela dever ser construída sobre a justiça e que somente poderá ser alcançada através de uma nova concepção dos direitos da pessoa e das reformas sociais (GS26).

Coerente com o Evangelho, o Concílio defende o respeito às pessoas e denomina de infame tudo quanto se opõe à vida: toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas de violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis (GS27).  Todavia, os Bispos conciliares lembram a necessária caridade e o esforço para dialogar com os grupos que desrespeitam a pessoa e a sua dignidade, pois também estes são grupos humanos (GS28).

A igualdade entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida e, nesta perspectiva, é inaceitável que haja desigualdades econômicas e sociais, pois estas são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade e à paz social e internacional. O Concílio lembra que cabe às instituições humanas, privadas ou públicas servir à dignidade e ao destino do homem, combatendo qualquer forma de sujeição política ou social, e salvaguardando, sob qualquer regime político, os direitos humanos fundamentais (GS29). Afirma, também, que a justiça e a caridade devem imperar em favor do bem comum e, em função disso, são superiores a uma ética puramente individualista (GS30). Só haverá justiça se houver leis justas, isto é, se houver ‘boa política’ que é uma maneira exigente de viver o compromisso cristão a serviço do bem comum e de transformar a sociedade, tornando-se uma forma elevada de caridade enquanto permitea construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a ação política é ação ética e escatológica [4].

Assim, o que importa é refletir e procurar perceber como a Igreja passou a atuar depois do Concílio. A GS chamada de ‘Constituição Pastoral’ deixa muito claro que, como Pastora que é a Igreja deve conduzir o seu rebanho e cuidar para que ele se desenvolva e contribua na sociedade em que está inserido. Especialmente na América Latina, a recepção do Concílio, através das Conferências Episcopais Latino Americanas (CELAM), insiste no protagonismo dos leigos e leigos que tornam a Igreja presente no mundo nas mais diversas instituições sociais tais como: a família, a escola e a comunidade. Nestes lugares, cada um é chamado a ser fermento, sal e luz. O texto da carta aos Hebreus (Hb 11,1-40) traz uma síntese da história da fé encarnada na realidade econômica, política, social e religiosa do povo de Deus. O texto ensina que pela fé se realiza concretamente uma ação libertadora, construtora da justiça, promotora da paz, em vista do bem comum, o que confirma que “a fé sem obras é morta” (Tg 2, 26).

Para que todos cumpram com sua função social é necessário que a educação seja uma prioridade das sociedades e, de outro lado, a formação humana também se constrói no serviço à comunidade, por isso, o Concílio estimula que as pessoas, e especialmente os cristãos, participem dos assuntos públicos nos movimentos sociais, nos Conselhos Municipais, nos sindicatos, nas associações, nas organizações e nos partidos. É preciso lembrar que a GS pode ser considerada uma carta de intenção sobre como a Igreja desejou se fazer presente no mundo, através da ação e do testemunho de cada cristão leigo, sem descuidar-se da participação na comunidade eclesial, celebrando e alimentando a espiritualidade. “A fé é compromisso que é preciso repartir…”.

Notas:

[1] Irineu de Lião, Contra as Heresias IV, 20, 7, Paulus, SP.
[2] Sistema que exclui das Igrejas o exercício do poder político.
[3] Discurso do papa Paulo  VI na Sede da  ONU.
[4] Que trata do destino final do homem e do mundo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

* Caso o comentário seja contrário a fé Católica, contrário a Tradição Católica será deletado.


Queria dizer que...

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.