Desejando construir um diálogo com o
mundo, a Igreja coloca como premissa cristã que a dignidade de toda
pessoa humana deriva da afirmação teológica de que homem e mulher foram
criados à imagem de Deus e redimidos por Jesus Cristo (Gaudium et Spes 12/13). Nesta
premissa se afirma que o ser humano é um ser uno, composto de corpo e
alma, e que ambos são bons e dignos de respeito. Assim, a dignidade
humana exige que o homem glorifique a Deus no seu corpo, não permitindo
que este se escravize às más inclinações do próprio coração (GS14).
Partícipe da luz da inteligência divina,
o homem passou a dominar o universo através das ciências, das técnicas e
das artes, o que lhe permitiu grandes avanços na conquista do mundo
material. Todavia, somente isto não lhe foi suficiente, pois sempre
buscou e encontrou uma verdade mais profunda, que na linguagem cristã é
conhecida como vocação, que é o chamado que Deus dirige a cada ser
humano para que se realize enquanto pessoa no serviço ao próprio Deus,
através do serviço aos irmãos (GS15). E,usando os dons que Deus lhes
deu, são chamados a promover e a defender a vida. No fundo da
consciência humana, o homem descobre e vive uma lei escrita pelo próprio
Deus no seu coração, que o chama a viver o amor e a fugir do mal, que é
a consciência moral. Assim, a dignidade reside na singular consciência
que Deus imprimiu em cada ser humano, que nem mesmo o pecado pode
diminuir (GS16).
Uma das significativas afirmações deste
primeiro capítulo é a liberdade humana. ‘Ela é um sinal divino oferecido
por Deus que deixa o homem entregue à sua própria decisão, a fim de que
proceda segundo a sua própria consciência e por livre adesão’ (GS17).
Nesta afirmação, a Igreja, ao se colocar contra toda tentativa de
controle de consciências, faz uma crítica às ideologias, especialmente
aos governos totalitários que ainda se faziam presentes na Europa e em
outros países. Na América Latina e especialmente no Brasil, a Igreja
assumiu uma posição profética de defesa da consciência, da liberdade e
da dignidade humana diante dos governos militares que perseguiram e
mataram muitos civis defensores da democracia.
O Concílio ainda disse uma palavra sobre
as muitas faces do ateísmo, presentes no mundo moderno, que tentam de
todas as formas negar a importância da religião, afirmando que a
autonomia humana deve ser plena, e os que o professam entendem que a
liberdade consiste em que o homem seja o próprio fim e autor único da
sua história, e pensam que isso é incompatível com o reconhecimento de
Deus. Por isso, quando alcançam o poder, atacam violentamente a
religião, difundindo o ateísmo também por meios de que dispõe o poder
público, sobretudo na educação da juventude (GS20). Apesar de rejeitar o
ateísmo, a Igreja espera que todos os homens, crentes e não crentes,
contribuam para a construção do mundo no qual vivem, a partir de um
prudente e sincero diálogo, deplorando qualquer tipo de discriminação
(GS21).
Vemos, pois, neste texto, a abertura da
Igreja que, diante de uma sociedade secularizada, conclama todos os
“homens de boa vontade” – tal qual chamou João XXIII – para a
transformação do mundo. Esta nova compreensão da ação da Igreja revela
que ela deseja dialogar com a sociedade. Para a Igreja, agir e emprestar
a voz para os que não têm voz, e chamar todas as pessoas,
independentemente da religião, para transformar o mundo, deriva da fé no
Espírito Santo que renova todas as coisas, e na certeza que a
encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo ocorreram para que todos
fossem salvos (GS22). Para a GS a vida humana está acima de tudo, pois,
como afirma Santo Irineu, ‘A glória de Deus é o Homem vivo’‘[1].
Ao constatar que o progresso técnico não
foi suficiente para intensificar o diálogo, o respeito nas relações e a
comunhão entre os homens, e que a doutrina da Igreja pouco dissera
sobre isso, o Concílio afirma que a Revelação cristã favorece a comunhão
entre as pessoas e, ao mesmo tempo, leva a uma compreensão mais
profunda das leis da vida social que o Criador inscreveu na natureza
espiritual e moral do homem (GS23).
Dentro do contexto em que os estados
modernos proclamaram a sua laicidade [2], e a Igreja reagiu defendo a
presença do catolicismo como religião oficial nos vários países
(especialmente no século XIX), a GS representa um novo olhar da Igreja
sobre as sociedades civis e o Estado. Neste documento, os Bispos não
reivindicam o retorno àcristandade, mas procuram sensibilizar os
governos e as sociedades para promoverem o bem público. O exemplo mais
significativo já foi apontado na ficha GS-01, quando o Papa Paulo VI se
dirigiu à ONU dizendo que ele não se apresentava diante daquela
assembleia como um chefe de Estado, o que ele também era, mas como um
“técnico em humanidade!” [3], ou seja, ele destaca que a função da
Igreja não é interferir na forma dos governos agirem, mas, enquanto uma
sociedade dentre outras, manifestar a sua compreensão de mundo, de homem
e de sociedade.
Haveremos de lembrar que a LG definiu que a Igreja é
composta pelo conjunto de batizados e que estes, enquanto membros do
povo de Deus, são também parte da sociedade civil. Portanto, em razão de
sua vocação batismal, cabe a cada um, a obrigação de tomar parte nos
caminhos políticos desta mesma sociedade. A Igreja compreende que a vocação à
comunidade é inerente ao ser humano, pois a vida tem origem em Deus que
colocou, no coração dos homens e mulheres, a vocação de ser membro da
família humana. Na nova Lei, Jesus ensinou que o amor a Deus não pode
ser separado do amor ao próximo, e que todos os mandamentos se resumem
em amar ao próximo como a si mesmo. No mandamento da unidade, ‘para que
todos sejam um’ (Jo15), a Igreja interpreta que toda humanidade é
chamada a assumir a responsabilidade social por tudo de bom e de ruim
que acontece no mundo. Este empenho de todos em favor da família humana
representa para a Igreja um sinal concreto da presença do Reino (GS24).
Aqui, fica claro o importante significado da presença do Papa na ONU.
Toda pessoa é chamada a participar das
mais variadas instituições sociais com o objetivo de contribuir para o
desenvolvimento de outras pessoas e, também como membro, tem o direito
de ser beneficiada pelas ações das respectivas instituições, o que
‘contribui para consolidar e desenvolver as qualidades das pessoas’
(GS25). Todavia, devido a problemas estruturais, econômicos, políticos,
sociais e culturais, nem toda sociedade tem condições de oferecer a seus
membros o que lhes é de direito. Estando a dignidade da pessoa acima de
tudo, se torna necessário garantir iguais condições básicas para uma
vida verdadeiramente humana, como: o alimento; o vestuário; a moradia; o
direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir
família; o direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à
informação; o direito de agir segundo as normas da própria consciência e
à proteção da sua vida; e o direito à justa liberdade, mesmo em matéria
religiosa. Se a ordem social está em função das pessoas, e não ao
contrário, o Concílio lembra que ela dever ser construída sobre a
justiça e que somente poderá ser alcançada através de uma nova concepção
dos direitos da pessoa e das reformas sociais (GS26).
Coerente com o Evangelho, o Concílio
defende o respeito às pessoas e denomina de infame tudo quanto se opõe à
vida: toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e
suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa como as
mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas de
violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade, como
as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as
deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e
jovens; e também as condições degradantes de trabalho em que os
operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como
pessoas livres e responsáveis (GS27). Todavia, os Bispos conciliares
lembram a necessária caridade e o esforço para dialogar com os grupos que
desrespeitam a pessoa e a sua dignidade, pois também estes são grupos
humanos (GS28).
A igualdade entre todos os homens deve
ser cada vez mais reconhecida e, nesta perspectiva, é inaceitável que
haja desigualdades econômicas e sociais, pois estas são obstáculo à
justiça social, à equidade, à dignidade e à paz social e internacional. O
Concílio lembra que cabe às instituições humanas, privadas ou públicas
servir à dignidade e ao destino do homem, combatendo qualquer forma de
sujeição política ou social, e salvaguardando, sob qualquer regime
político, os direitos humanos fundamentais (GS29). Afirma, também, que a
justiça e a caridade devem imperar em favor do bem comum e, em função
disso, são superiores a uma ética puramente individualista (GS30). Só
haverá justiça se houver leis justas, isto é, se houver ‘boa política’
que é uma maneira exigente de viver o compromisso cristão a serviço do
bem comum e de transformar a sociedade, tornando-se uma forma elevada de
caridade enquanto permitea construção de uma sociedade mais justa e
fraterna. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a ação política é ação
ética e escatológica [4].
Assim, o que importa é refletir e
procurar perceber como a Igreja passou a atuar depois do Concílio. A GS
chamada de ‘Constituição Pastoral’ deixa muito claro que, como Pastora
que é a Igreja deve conduzir o seu rebanho e cuidar para que ele se
desenvolva e contribua na sociedade em que está inserido. Especialmente
na América Latina, a recepção do Concílio, através das Conferências
Episcopais Latino Americanas (CELAM), insiste no protagonismo dos leigos
e leigos que tornam a Igreja presente no mundo nas mais diversas
instituições sociais tais como: a família, a escola e a comunidade.
Nestes lugares, cada um é chamado a ser fermento, sal e luz. O texto da
carta aos Hebreus (Hb 11,1-40) traz uma síntese da história da fé
encarnada na realidade econômica, política, social e religiosa do povo
de Deus. O texto ensina que pela fé se realiza concretamente uma ação
libertadora, construtora da justiça, promotora da paz, em vista do bem
comum, o que confirma que “a fé sem obras é morta” (Tg 2, 26).
Para que todos cumpram com sua função
social é necessário que a educação seja uma prioridade das sociedades e,
de outro lado, a formação humana também se constrói no serviço à
comunidade, por isso, o Concílio estimula que as pessoas, e
especialmente os cristãos, participem dos assuntos públicos nos
movimentos sociais, nos Conselhos Municipais, nos sindicatos, nas
associações, nas organizações e nos partidos. É preciso lembrar que a GS
pode ser considerada uma carta de intenção sobre como a Igreja desejou
se fazer presente no mundo, através da ação e do testemunho de cada
cristão leigo, sem descuidar-se da participação na comunidade eclesial,
celebrando e alimentando a espiritualidade. “A fé é compromisso que é
preciso repartir…”.
Notas:
[2] Sistema que exclui das Igrejas o exercício do poder político.
[3] Discurso do papa Paulo VI na Sede da ONU.
[4] Que trata do destino final do homem e do mundo
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