sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Mariologia - Parte III




O Antigo Testamento há de ser considerado à luz do Novo Testamento, e vice-versa, pois constituem um só discurso de Deus aos homens. Acrescentamos que a Escritura Sagrada como tal há de ser relida à luz da Palavra Viva que a antecede e a acompanha. Com efeito, a Revelação de Deus aos homens foi feita primeiramente por via oral e só posteriormente foi escrita. Por isto a leitura católica da Bíblia sempre leva em consideração o entendimento que aos antigos intérpretes davam ao texto sagrado.

            Ora o paralelismo entre Eva e Maria ocorre já no século II, sob a pena de S. Justino (+ 165).

            “Entendemos que se fez homem por meio da Virgem, de sorte a extinguir a desobediência, oriunda da Serpente, por ali mesmo onde haveria começado. Eva era Virgem e incorrupta (Eva era virgem ao pecar, porque só depois do pecado teve relações com Adão, conforme Gn 4,1); concebendo a palavra da serpente, gerou a descendência da morte. A Virgem Maria, porém, concebeu na fé e alegria quando o anjo Gabriel lhe anunciou a boa nova de que o Espírito do Senhor viria sobre ela; a Força do Altíssimo a cobriria com sua sombra, de modo que o Santo que dela nasceria, seria o Filho de Deus... Da Virgem nasceu, pois, Jesus, de quem falam tanto as Escrituras... aquele por quem Deus destrói a serpente”.

            Note-se o paralelismo: Eva é portadora da desobediência e da morte; Maria, ao contrário, traz a fé e a alegria. Importante no texto é a observação: Deus quis resolver o impasse oriundo do pecado mediante os elementos mesmos que introduziram o pecado: o anjo (mau) falou à mulher infiel a Deus, o anjo Gabriel falou à mulher fiel a Deus; no primeiro caso, a mulher colabora para a morte; no segundo caso, a mulher (a nova Eva, a verdadeira Mãe da Vida) colabora para a vida.

            S. Irineu (+202) desenvolve o paralelismo: Parte da concepção de que o plano de Salvação não é simplesmente um conserto ou um reparo feito no projeto violado por Adão no paraíso; mas é um recomeçar desde as origens; nesse recomeçar cada qual dos elementos envolvidos na queda é chamado a desenvolver um papel de “recapitulação” para apagar o pecado, Deus quis voltar às origens do pecado e recomeçar a história com elementos correspondentes aos da queda: assim Jesus Cristo é o novo ou segundo Adão (Rm 5,14; 1Cor 15,45-49); a cruz de Cristo é a nova árvore do paraíso, e Maria é a nova Eva. Da mesma forma que Eva se seduziu para desobedecer a Deus, Maria se deixou persuadir a obedecer a Deus para ser ela – a Virgem Maria – a advogada de Eva, de sorte que o gênero humano, submetido à morte por uma Virgem, fosse dela libertado por uma Virgem, tornando-se contrabalançada a desobediência de uma Virgem pela obediência de outra.

            S. Epifânio de Salamina (Chipre), (+403), se faz, de novo, arauto do paralelismo:

            “Eva trouxe ao gênero humano uma causa de morte: por ela a morte entrou no mundo; Maria trouxe uma causa de vida; por ela a vida se estendeu a nós. Foi por isso que o Filho de Deus veio a este mundo: para que, onde abundou o pecado, superabundasse a graça. Onde a morte havia chegado, aí chegou a vida, para tomar seu lugar; e aquele mesmo que nasceu da mulher para ser nova vida, haveria de expulsar a morte, introduzida pela mulher. Quando ainda virgem no paraíso, Eva desagradou a Deus por sua desobediência. Por isto mesmo emanou da Virgem a obediência própria da graça, depois que se anunciou o advento do Verbo revestido de corpo, o advento da eterna Vida do céu”.

Conclusão


O título de Nova Eva é o primeiro título com o qual Maria Santíssima é venerada pela Tradição Cristã. É o título de maternidade – Mãe da Vida – em relação a Jesus, o Messias. Esta prerrogativa foi a primeira a ser definida por um Concílio Geral, ou seja, pelo Concílio de Éfeso em 431: Maria é Theotókhos, Mãe de Deus, na medida em que Deus se quis fazer homem. Deste título decorrem as demais prerrogativas de Maria Santíssima.

Vê-se que a consideração de Maria, desde as suas origens, tem caráter cristológica. Longe de ser independente de Cristo, é suscitada pela definição da identidade de Jesus Cristo. Assim a autêntica piedade Mariana está relacionada com a fé em Jesus Cristo.


A MÃE DO MESSIAS (Is 7,14; Mq 5,1-2)

ISAIAS 7,14

            Os antecedentes deste versículo são os seguintes:

            Em 930 deu-se o cisma de Israel, donde resultam o reino do Norte ou da Samaria e o reino do Sul ou de Judá. Este é o da dinastia de Davi, que tem as promessas de dar ao mundo o Messias, ao passo que o reino do norte é cismático.

            Por volta de 735 reinava em Judá Acaz (736-716), filho de Joatão e, por conseguinte, descendente de Davi. Ao Norte, o rei Facéia (737-732) da Samaria e o rei Rasin da Síria se coligaram para derrubar o pesado jugo da Assíria; queriam ampliar e fortalecer esta coligação, envolvendo nele o reino de Judá. Acaz, porém, recusou-se a entrar na campanha. Em conseqüência, os dois reis do Norte resolveram fazer-lhe a guerra; queriam depô-lo e colocar em seu lugar um sucessor, filho de Tabael, de origem não davídica; vencendo Judá, os dois reis abriram caminho para o Egito, um possível aliado, sempre disposto a combater os mesopotâmicos – assírios e babilônios.

            Ora o exército da Síria e da Samaria invadiu Judá, obrigando Acaz a se recolher em Jerusalém, ameaçada pelos adversários numa situação angustiante. Diz o texto sagrado:

            “Agitou-se o coração de Acaz e o coração de seu povo, como se agitam as árvores do bosque com o vento” (Is 7,2).

            A única saída para Acaz era pedir a intervenção do rei assírio Taglat-Falasar III (745-727), que não tardaria a atender. Todavia a política de alianças com povos estrangeiros era proibida a Judá, pois tais alianças acarretavam perigo de contaminação religiosa para o povo messiânico; (2Rs 16,7-10; 2Cr 28,16-20).

            Foi então que Deus enviou o profeta Isaías ao rei Acaz, para lembrar-lhe a “política da fé” ou a necessidade de confiar na Providência Divina: “Não temas nem te acovardes... Se não credes, não subsistireis” (Is 7,4-9). A fé devia ser o fundamento da existência do povo de Deus, este havia de se apoiar na palavra de Deus.

            Já que o profeta exigia de Acaz uma atitude de fé muito intensa, ofereceu ao rei um sinal, penhor da incolumidade do rei de Judá: “Pede para ti um sinal do Senhor teu Deus nas profundezas do abismo ou no alto do céu” (Is 7,11).

            Acaz não era fiel ao Senhor; mandara imolar seu filho aos deuses, “fazendo-o passar pelo fogo segundo os costumes abomináveis das nações que o Senhor expulsara de adiante dos filhos de Israel” (2Rs 16,3). Por isto recusou hipocritamente o sinal, como quem não quer tentar a Deus pedindo milagres; Is 7,12. Em conseqüência o profeta, em nome de Deus propôs o sinal:

            “Sabei que o Senhor mesmo vos dará um sinal: Eis que a jovem concebeu e dará à luz um filho, e por-lhe-á o nome de Emanuel” (Is 7,14).

            O anuncio é solene. Para entendê-lo, é preciso identificar quem seja esse Emanuel e quem seja a jovem mãe do Emanuel.

            Quem é o Emanuel? Isaías tem em vista, mediata ou imediatamente, o Messias. Este, sim, é a garantia de que a dinastia de Davi não será destronada; por causa do Messias, prometido a Davi e à sua descendência. É que Acaz não será desapossado da realeza; a casa de Acaz (que é casa da Davi) deverá permanecer incólume, porque a ela foi prometido o Messias como descendente de Davi. Esta interpretação é confirmada pela consideração, de Is 9, 5s onde aparece um Menino-Messias, que tem predicados divinos:

            “Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Traz o cetro do principado e se chama Conselheiro Admirável, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz. O seu glorioso principado e  a paz não tem fim, no trono de Davi e no seu reino, firmando-o e consolidado-o sobre o direito  e  sobre  a  justiça” Is 9, 5s).

            O título “Deus Forte” está reservado ao Senhor Javé em Is 45, 21: Dt 10,17; Jr 32,18; Ne 9,32.

            E quem é a mãe do Emanuel?

            São Mateus 1,23: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe dará o nome de Emanuel”.

            A virgindade da mãe do Messias põe em revelo o caráter extraordinário do seu parto. O filho dessa Virgem Mãe é especial dom de Deus aos homens, como a salvação é dom de Deus. A Bíblia apresenta o caso de outras mulheres que deram à luz em circunstâncias extraordinárias homens importantes da história da salvação.
           
            Isaías garante a Acaz a incolumidade do seu trono prometendo o nascimento do Emanuel ou do Messias, filho de mãe-virgem.  É a salvação a ser trazida em plenitude pelo Messias que assegura a salvação a Acaz sete séculos antes do Messias; a grande bênção do Deus-conosco exerce ação antecipada nos tempos de Acaz.

            Para entender bem o valor do sinal assim dado por Isaías, devemos ponderar o seguinte: estamos acostumados a ver a história, como algo que se desdobra do passado para o futuro; é uma sucessão de eventos que dependem de um evento básico. No caso dos profetas, porém, requer-se outro modo de conceituar a história; em vez de se desdobrar do passado para o futuro, ela tem seu ponto de partida no futuro; ela depende do futuro e tem sua justificativa no futuro. Com outras palavras: a história sagrada tem seu centro no Messias ou em Jesus Cristo e á a partir deste que os eventos se sucedem e desenvolvem. Ainda: Davi é função de Jesus Cristo, é explicado por Jesus Cristo, em vez de Jesus Cristo ser função de Davi, explicável por Davi.

 

MIQUÉIAS 5,1-2


“E tu, Belém Efratá, pequena demais para ser contada entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que deve governar Israel. Suas origens são de tempos antigos, de dias imensuráveis. Por isto Deus os abandonará até o tempo em que a parturiente dará à luz aquela que deve dar à luz. Então o que houver restado de seus irmãos, se reunirá aos filhos de Israel”.

            A própria tradição judaica, antes dos cristãos, viu nestes versículos uma profecia messiânica a anunciar a vinda de um novo Davi, que governaria com firmeza e segurança o povo de Deus. São Mateus dá a ver que tal profecia se cumpriu por ocasião do nascimento de Jesus (Mt 2,6); os próprios sacerdotes e escribas de Israel citaram Mq 5,1-2 para indicar o lugar em que o Messias deveria nascer (Mt 2,4-6).

            O profeta supõe Israel humilhado por seus inimigos. A humilhação, porém, não é definitiva. Na pequena cidade de Belém aquela que deve dar à luz um soberano, cheio do poder de Javé, que dará inicio à paz messiânica. – Alguns traços particulares são importantes:

            a) Mateus, em vez de dizer: “Belém,... pequena demais...”, prefere dizer: “Belém... não és o menor entre os clãs de Judá”. O Evangelista atribui aos sacerdotes e escribas de Herodes um modo de ler que exalta a cidade do Messias.  Mt 2,6

            b) As origens desse soberano são “de tempos antigos”. Há aqui uma referência aos primórdios mais remotos da casa de Davi, de acordo com a genealogia de Rt 4,18-22. Mas pode-se ver aí também uma alusão à origem transcendental ou divina desse Rei.
           
c) Chama a atenção a construção da frase de Miquéias: em vez de dizer simplesmente que virá o Grande Rei, o profeta escreve:  “... Até o momento em que dará à luz aquela que deve dar à luz”. Por que essa referência especial à Mãe do Rei-Messias? Essa Mãe já era conhecida dos contemporâneos de Miquéias através da pregação de Isaías; eis por que ela estaria em primeiro plano no vasto quadro da profecia messiânica, segundo Miquéias.

            d) Para se entender o nexo existente entre o Rei Messias e sua Mãe, convém lembrar que a rainha-mãe gozava de especial veneração nas cortes do Oriente antigo: na Assíria, na Babilônia, na Fenícia, no Egito... No Antigo Testamento a rainha-mãe era chamada gebirah, isto é, mãe do Senhor ou Grande Dama; (1Rs 15,13; 2Rs 10,13; Jr 13, 18; Jr 29,2).  O nome da rainha-mãe é freqüentemente mencionado pelo autor dos livros dos Reis.

            Percebe-se claramente a eminente posição da rainha-mãe, comparando entre si 1Rs 1,16-17  e  1Rs 2,19; no caso, a esposa de Davi, Betsabéia, vai pedir ao rei em favor de seu filho Salomão, ajoelhando-se diante do rei; no segundo caso o rei Salomão recebe a visita de sua mãe Betsabéia, ergue-se para ir ao seu encontro, prostrando-se diante dela e manda que ela se sente à direita do rei.

            Estes dados explicam que à expectativa do futuro Rei messiânico em Israel estivesse associado à figura honrosa da Mãe do Messias, como em Is 7,14 e Mq 5,1-2. A referência à venerável Mãe do Messias em ambos os casos está de acordo com os costumes das cortes orientais.



OUTROS TEXTOS DO ANTIGO TESTAMENTO

A ESPOSA DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS

            Este é um livro de interpretação difícil. Os comentadores sugerem diversos modos de entender. O mais verossímil afirma que o Cântico apresenta o amor entre um jovem e uma jovem, desde o início do namoro até o contrato matrimonial, como tipo ou figura do amor do Senhor Deus pela Filha de Sion; esta é tida pelos Profetas como Esposa de Javé; Is 54,1-8; Is 62,4-5. Ora a  Esposa  de  Javé  no  Novo  Testamento  é a Igreja 2Cor 11,2; Ef 5,25-29, da qual Maria é a miniatura; em Maria a Igreja vê seu protótipo e considera o estado final que tocará a todos os justos. A alma de Maria Santíssima, cheia de graça, está unida ao Senhor Deus mais do que qualquer criatura. Daí poderem ser-lhe aplicados os dizeres que o autor do Cântico dirige à esposa neste livro. Maria sereia a esposa em sentido pleno.


A SABEDORIA PERSONIFICADA


            Os livros dos Profetas e do Eclesiástico personificam a Sabedoria. Dir-se-ia que os respectivos autores não a conceberam como simples atributo de Deus, mas como pessoas que assistiu a Deus na obra da criação. Tenham-se em vista Pr 8, 22-31 e Eclo 24, 3-21.

            A liturgia aplica estes textos a Maria Santíssima, como se fosse ela a Dama que fala ou que é apresentada nos textos citados.
           
            Os cristãos, autores do Novo Testamento (1Cor 1,24; Hb 1,3), desenvolveram os textos sapienciais antigos, vendo neles uma alusão à segunda Pessoa da Santíssima Trindade; uma vez revelada a existência de um só Deus em três Pessoas, a releitura cristã do Antigo Testamento descobriu aí insinuações do Verbo de Deus. – Ora Maria Santíssima foi a sede ou o tabernáculo da Sabedoria do Pai na qualidade de Mãe do verbo feito homem. Além disto, ela foi a obra-prima da Sabedoria Divina. Em conseqüência deste último relacionamento com a Sabedoria, os predicados podem ser “adaptados” a Maria.

 

OUTROS TEXTOS


            É comum na Liturgia das festas de Nossa Senhora rezarem-se os “Salmos de Sion” ou salmos que louvam a cidade de Jerusalém (Sl 43.48.86). A razão deste uso é que a cidade santa é considerada mãe do povo israelita ou mesmo mãe de todos os povos (São Paulo fala de Jerusalém celeste, que é nossa mãe em Gl 4,26). Aliás, o livro do Apocalipse funde entre si os conceitos de Esposa, Mãe e Cidade.

            “Vi descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova, pronta como esposa que se enfeitou para o seu esposo” (Ap 21,2).

            “Um dos sete anjos... disse-me: Vem! Vou mostrar-te a Esposa, a mulher do Cordeiro! – Ele então me arrebatou em espírito sobre um grande e alto monte, e mostrou-me a Cidade Santa, Jerusalém, que descia do céu, de junto de Deus” (Ap 21, 9-10).

            Ora, a Mãe de Deus e Mãe dos homens tem afinidade com a Jerusalém celeste, esposa e mãe, segundo a linguagem bíblica. Daí aplicarem-se a Maria os louvores que tocam a Jerusalém, segundo a praxe litúrgica católica.

            Merecem registro ainda duas grandes mulheres do Antigo Testamento, que desempenharam um papel importante há história da salvação do seu povo: Judite e Éster, a cada qual é dedicada um livro do Cânon católico.

            Judite é viúva, figura desprotegida e fraca do ponto de vista humano, que fortalecida pela oração e o jejum, realiza extraordinária façanha; matou um general Holofenes, que se fazia de grande “deus”. O procedimento de Judite foi lícito, dado que estava em situação de guerra; o do Holofemes é que foi falho, visto que se deixou obcecar pela beleza da mulher espiã. A Virgem Santíssima, na Liturgia, são aplicados os louvores tributados pelo povo a Judite:

            “Tu és a glória de Jerusalém! Tu és o supremo orgulho de Israel! Tu és a grande honra do nosso povo! Abençoada sejas tu pelo Senhor na sucessão dos tempos!” (Jt 15,9-10).

            Quanto a Éster, aparece também como figura frágil, pois é israelita na corte do rei Assuero, da Pérsia. Todavia, fortalecida pelo Senhor Deus, sabe encaminhar os acontecimentos de modo a livrar seu povo do grave perigo de extermínio planejado pelo Primeiro Ministro Amã; foi a grande intercessora junto ao rei em prol da sua gente. Ora Maria é a intercessora por excelência em favor dos homens; a história refere vários casos em que a oração de Maria Santíssima, solícita pelos fiéis, obteve de Deus a salvação; um dos episódios mais famosos é o da batalha naval de Lepanto, travada em 1571 pelas forças de Veneza e Espanha contra os turcos maometanos; estes ameaçavam invadir o Ocidente cristão; o Papa S. Pio V (1566-72), tendo pedido a intercessão de Maria Santíssima, nessa ocasião, houve por bem instituir a festa do Santo Rosário aos 7 de outubro de cada ano para enfatizar e agradecer a intercessão da Virgem Santíssima.

            As duas mulheres – Judite e Éster – lembram que é Deus quem salva os homens como Ele quer, servindo-se dos instrumentos mais precários aos olhos humanos. É este um traço constante da história da salvação, que São Paulo experimentou muito vivamente a ponto de dizer: “Eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois, quando sou fraco, então é que sou forte” 2 Cor 12,10. Ora Maria foi certamente a humilde serva do Senhor, que a Providência Divina quis elevar à categoria de nova Eva, intimamente associada à obra de salvação do gênero humano.


JUDITE


“Está escrito que Judite voltou, depois de ter arriscado a vida, o sumo sacerdote a abençoou dizendo: Tu és bendita do Senhor, Deus Altíssimo, minha filha entre todas as mulheres da terra, jamais os homens cessarão o teu louvor” Jt 13, 18-19. Nós dirigimos a Maria as mesmas palavras: “Bendita és tu entre as mulheres! A coragem que tiveste jamais desaparecerá do coração e da lembrança da Igreja”. (Ramiro Cantalamessa).

 

 

A FILHA DE SIÃO


“As palavras de Jesus às vezes descrevem algo já presente, às vezes, criam e mandam existir o que exprimem. A esta segunda ordem pertencem as palavras de Jesus dirigidas a Maria e a João no momento da morte. Dizendo: “Isto é o meu corpo”... Jesus transformou o pão em seu corpo; assim também, com as devidas proporções, dizendo: “Eis aí a tua mãe, e Eis aí o teu Filho”, Jesus constitui Maria mãe de João e João filho de Maria. Jesus não apenas proclamou a nova maternidade de Maria, mas a instituiu. Esta, pois, não vem de Maria, mas da Palavra de Deus; não se baseia no mérito, mas na graça.

Debaixo da cruz, Maria mostra-se, pois, como a filha de Sião que, depois do luto e da perda dos seus filhos, recebe de Deus novos filhos, mais numerosos que antes, não segundo a carne, mas segundo o Espírito. Um salmo que a Liturgia aplica a Maria, diz: “Tiro, Filistéia e até mesmo a Etiópia: estes ali nasceram. Mas de Sião se há de dizer: “Estes e aqueles nela nasceram...”. O Senhor há de apontar no registro dos povos: “Este nela nasceu”. (Sl 86, 4-6). É verdade: todos nasceram lá!. Dir-se-á também de Maria, a nova Sião: estes e aqueles dela nasceram. De mim, de ti, de cada um, também daquele que ainda não o sabe, no livro de Deus está escrito: “Este ali nasceu”.

Mas, por acaso, não ‘nascemos da Palavra de Deus viva e eterna’ (1Pd 1,23)?  Não nascemos de Deus, (Jo 1,13), renascidos ‘d’água e do Espírito’ (Jo 3,5)? É a pura verdade, mas isso não impede que, num sentido diferente, subordinado e instrumental, tenhamos nascidos também da fé e do sofrimento de Maria. Se Paulo, que é um servo e um apóstolo de Cristo, pode dizer aos seus fiéis: Fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, por meio do Evangelho (1Cor 4,15), quanto mais pode dizê-lo Maria, que é a mãe de Cristo!  Quem mais do que ela pode fazer suas palavras do Apóstolo: Filhinhos meus, por quem de novo sinto as dores do parto (Gl 4,19)? Ela nos gera ‘de novo’ debaixo da cruz, porque já nos gerou uma primeira vez, não na dor, mas na alegria, quando deu ao mundo a Palavra viva e eterna que é Cristo, na qual fomos regenerados.

As promessas de Deus não se referem a puras abstrações, nem a cidades ou muralhas. Referem-se as pessoas concretas, das quais todas aquelas coisas são símbolos e imagens. E, se se referem a pessoas concretas, a quem se referem aquelas palavras do salmo, em que se realizam de maneira mais clara do que em Maria, a humilde filha de Sião, início também cronológico daquele ‘resto’, ao qual pertencem as promessas (Rm 11,5-8)?

Confiantes nas potencialidades e riquezas inesgotáveis da Palavra de Deus, que vão muito além dos esquemas exegéticos, aplicamos a Maria o canto de Sião reconstruído depois do exílio que, cheia de admiração olhando para os seus novos filhos, exclama: “Quem me gerou estes filhos? Eu não tinha filhos,  era estéril, quem  os criou?” (Is 49,21).

Não se trata de uma aplicação subjetiva, mas objetiva; isto é, não se baseia no fato de Maria ter ou não pensado, naquele momento, nestas palavras – de fato, é mais provável que não -, mas no fato destas palavras, por disposição divina, objetivando terem se realizado nela. Isto se descobre por uma leitura espiritual da Escritura, feita com a Igreja e na Igreja. E como sai perdendo quem se coloca na impossibilidade de jamais a poder fazer! Perde o Espírito, e contenta-se com a letra. A moderna ciência da interpretação formulou um princípio interessante: afirma que para entender um texto não podemos prescindir do resultado por ele produzido, da ressonância que teve na história. Isto vale ainda mais para os textos da Sagrada Escritura; estes não se entendem, em todo o seu conteúdo e virtualidade, se não a partir da história do que produziram em Israel e depois na Igreja; a partir da vida e da luz que deles brotam. Isto vale sobre tudo para palavras com as que estamos examinado. Esta ‘história das realizações’ é o que a Igreja chama de Tradição.         

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