quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Mariologia - parte II



O PRIMEIRO ANÚNCIO DA BOA NOVA – Gn 3,15


            O Antigo Testamento não fala explicitamente sobre Maria Santíssima. Alguns de seus textos, porém ao tratar do Messias, referem-se à Mãe do Messias. Tais são as passagens de Gn 3,15 (o primeiro anuncio da Boa Nova), Is 7,14 (a Profecia do Emanuel), Mq 5,1-2 (a referência à parturiente).
            Outros textos do Antigo Testamento são vistos pela Tradição como ecos antecipados do papel que Maria desempenhou na História da Salvação.
            Gn 18, 10 -15 – Isaac nasceu de mãe estéril.
            Gn 25, 21 – Esaú e Jacó nascerem de mãe estéril.
            Gn 30, 22-24 – José nasceu de mãe estéril.
            Jz 13, 1-24 – Sansão igualmente.
            1 Sm 1, 1-28 – Samuel igualmente.       
            Também as grandes mulheres do Antigo Testamento, como Judite e Ester, são tidas como figuras de Maria Santíssima.
O Protoevangelho (Gn 3,15)
A grande maioria das versões bíblicas que existem hoje no mercado brasileiro e latino-americano, apresentam notas de rodapé, bem como dão títulos às perícopes bíblicas. Nem os títulos e muito menos as notas de rodapé fazem parte do texto original do grego ou do hebraico. Estes “acréscimos” ao texto são construídos na intenção de que o leitor comum, que não dispõe de comentários bíblicos, possa com as notas de rodapé e com os títulos, entender melhor o texto. Ocorre, no entanto, que ao serem incorporados estes acréscimos, o leitor vai pouco a pouco dando aos acréscimos valor igual ao que dá ao próprio conteúdo bíblico. Ou seja, as notas de rodapé e os títulos das perícopes passam a direcionar de forma decisiva a interpretação dos textos.
Para o leitor do texto bíblico seria fundamental que não houvesse nenhum título nas perícopes bíblicas. O título é sempre um reducionismo; ele direciona o leitor e interpreta previamente o texto. É difícil sustentar a ideia de que os títulos das perícopes bíblicas sejam apenas uma ajuda metodológica isenta. Os títulos tem por trás de si uma preocupação em interpretar previamente o texto. Os títulos adotados interpretam a narrativa de Gênesis 3, em uma perspectiva preocupante por se tratarem de títulos pós-pascais. Os temas falam de “pecado”, “culpa”, “tentação”, “queda do homem” e “mal”. É preciso que nós aprendamos a ler o texto a partir de pelos menos duas perspectivas: a perspectiva estrita, ou seja o sentido do texto no próprio texto, lembrando que todo texto tem um contexto. Este é fundamental para que possamos fazer outro tipo de leitura apoiado em uma perspectiva ampla do mesmo texto.

O recorte escolhido para esta averiguação elege o seguinte tema: a serpente porque se faz necessário entender o significado desta imagem para depois compreendemos o texto de forma integral.
Este é um importante personagem e elemento simbólico nesta narrativa de Gênesis 3. É ele quem conduz a maior parte do enredo da narrativa. Então precisa ser destituído de todos os preconceitos e limitações interpretativas. Vamos ver então a primeira cena em que a serpente aparece:
A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: ‘Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do Jardim?’A mulher respondeu à serpente: ‘Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.’ A serpente disse então à mulher: ‘Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deuses, versados no bem e no mal.’ (Gn 3, 1-5).
A astúcia é de um animal do campo. Campo lido como sinal da ruptura dos laços com Deus. Perceba que de acordo com Gn 2,9, comparado com este relato fica nítido que a mulher não sabe nem mesmo qual foi o fruto que Deus proibiu comer. Isto é sinal de desatenção. E ao mesmo tempo serve como mecanismo para mostrar toda a astúcia da serpente. A mesma desatenção que fez o homem permitir a entrada de um animal do campo no jardim faz com que a mulher se deixe seduzir. O homem representa a exterioridade e a mulher a interioridade. A nota de rodapé da Bíblia de Estudos Almeida – BEA não lembra nada disso:
No Antigo Oriente, a serpente era um símbolo da sabedoria e dos poderes mágicos. Além disso, a sua astúcia era proverbial (cf. Mt 10.16). Essas características a predispunham para servir como representante de um poder maléfico e oposto aos planos de Deus, que se vale da sedução para incitar à desobediência ao mandamento divino. Por isso, mais tarde a serpente veio a ser identificada com o diabo (BEA, 1999, p. 21).
Este comentário de rodapé deixa bem claro para o leitor que a serpente é identificada com o diabo. Isto é influência da teologia de São João, portanto deveria ser a segunda forma de ler o texto e não a primeira. Ela também é representante de um poder maléfico e incita os humanos à desobediência ao Iahweh Deus. Todo este poder maléfico existe na serpente porque ela vem do oriente, onde sua sabedoria é identificada como magia. A partir destes comentários de rodapé, no Oriente (terra estrangeira em relação a Israel), magia, maldade, desobediência e diabo serão sentidos profundamente interligados na cabeça do leitor bíblico. Consequentemente este tipo de leitura deve ser evitado pois não condiz com o sentido estrito do texto.
O comentário da Bíblia Vozes se aproxima muito da BEA:
A serpente, símbolo da fertilidade em Canaã e de força política no Egito, é a usurpadora da árvore da imortalidade na epopéia balilônica de Guilgamesh. Aqui é uma criatura como as outras, apenas mais astuta, que significa o demônio” (BV, l982, p. 30).

Aqui apenas o diabo é substituído pelo termo demônio. Novamente há um interesse em associar o sentido demoníaco a outras culturas: Canaã, Egito e Babilônia. Reforça- se nesta nota de rodapé a ideia de que o demônio vem do mundo cultural estranho, estrangeiro. O demônio é, então, o outro, ou seja: Canaã, Babilônia e o Egito.
A versão da TEB não entra na lógica das duas versões anteriores. Faz uma outra contextualização do personagem serpente:
Há também aqui uma aproximação desejada pelo autor, em nus (‘arummim) de 2,25 e astuto (‘arum) de 3.1. No antigo Oriente, a serpente desempenhava um grande papel como potência de fertilidade (Canaã) e como f orça política (Egito); na célebre epopéia babilônica de Guilgamesh, a serpente roubava ao herói a planta da imortalidade. Seduzidos pela astúcia da serpente (v. 4) o homem e a mulher vão adquirir um saber que efetivamente lhes revelará a nudez, isto é, a sua fraqueza (v.7)”(TEB, l995, p. 28).
Ao reconhecer que a palavra nudez e astúcia no hebraico são muito semelhantes, a nota de rodapé abre uma associação entre estes dois elementos sem dizer a que isso possa remeter. Como nas notas de rodapé anteriores, a TEB identifica a serpente como originária de várias outras culturas. Em Canaã, ela representa potência de fertilidade, no Egito, representa força política e, na Babilônia, ela é astuta. Estes dados de outras culturas são postos, mas não são interpretados. A única aproximação que se percebe é que cedendo a sedução da serpente, o homem e a mulher conhecerão a nudez que o comentarista identifica como fraqueza. Ou seja, o texto caminha na órbita do roubo da imortalidade algo típico de qualquer esquema interpretativo religioso.  Neste sentido, a Serpente não representa o demônio mas a redução dos projetos de Deus aos planos do homem.
O que podemos dizer seguramente sobre a serpente?
A serpente está ligada a todos os cultos da natureza, é o símbolo da perpétua renovação. Baal e Anat foram adorados em Israel porque prometiam a chuva da primavera, as colheitas abundantes, a fecundidade dos rebanhos. Toda a história de Israel em Canaã esteve marcada pela luta entre Iahweh e Baal. Este último engana Israel dizendo-lhe que é ele que traz a fecundidade e não Iahweh. Em nosso relato, a serpente é a figura destes deuses mentirosos que haviam traído os estrangeiros e que separam o homem de sua aliança com o único Senhor, ou seja, a Serpente representa a perda da harmonia com Deus devido à sedução da IDOLATRIA.
A forte tendência das versões em identificar a serpente com o mal, com o demoníaco, com o diabólico, impede o leitor de reconhecer que nestas outras culturas do Oriente: Canaã, Egito e Babilônia, a serpente era uma representação divina, era provavelmente um deus concorrente de Iahweh. “A figura da serpente passa agora a um novo plano: de um animal (v. 1b), e falante como um ser humano (v. 1b), chega a ser equivalente de Deus, pois sabe o que ele sabe o que implica ser ‘como Deus’ (v.5), e opõe-se ao projeto de Iahweh um anti-projeto equivalente (não morrerás, v. 4b). Estamos portanto diante de um desarranjo do projeto inicial. Em seu contexto original, a serpente ao ser escutada pela mulher e também pelo homem, é elevado por eles ao patamar de divindade, ou seja, concretizou-se a idolatria.Todos estes atributos relativos à serpente e que destacamos acima demonstram que o texto gira em torno da centralidade do Deus de Israel que no coração dos homens será sempre desafiado por outros tipos de cultos a falsos deuses.
Não estamos diante de uma batalha entre Deus e o diabo neste texto e sim diante de uma apresentação da luta do homem diante da centralidade de Deus em sua vida e consequentemente da realização de sua total liberdade em Deus ou da traição de sua própria vocação e a acolhida de outros deuses ou no pior dos casos a entrega à tentação de se auto considerar divino.
Vamos agora à segunda aparição da serpente na narrativa de Gênesis 3.
Iahweh Deus disse à mulher: “Que Fizeste?” E a mulher respondeu: “A serpente me seduziu e eu comi.” Então Iahweh Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso és maldita entre os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida. Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,13-15).
A Bíblia de Estudos Almeida faz o seguinte comentário de rodapé a respeito desse texto: “Os cristãos veem nesta menção à descendência da mulher uma velada referência ao Messias na sua luta contra Satanás e na sua vitória final sobre as forças do mal” (BEA, 1999, p. 22). Novamente a serpente é demonizada e o comentário provoca o leitor a entender a narrativa de Gn 3 a partir do acontecimento de Jesus Cristo e não a partir dela mesma. A Bíblia Vozes faz o seguinte comentário de rodapé sobre esta cena:
Deus começa a punir a serpente, a primeira responsável pelo pecado. A maldição da serpente é uma etiologia que procura explicar o porquê do comportamento hostil e traiçoeiro da serpente em relação ao homem. Ela é assim porque foi amaldiçoada por Deus por haver seduzido os primeiros homens. Como a serpente, o mal ronda e ameaça o homem, mas este pode superá-lo. A expressão os descendentes (semente em hebr.) foi entendida pela tradução grega no singular, o descendente, isto é, o Messias. A vulgata afirma que é a mulher quem ferirá a cabeça da serpente. Por isso o texto foi interpretado pela Igreja Católica com relação a Jesus Cristo, que esmagou as forças do mal, e com relação a Maria, sua mãe (BV, l982, p. 31).
A serpente neste comentário é a única responsável pelo pecado. Ela é amaldiçoada por Iahweh, pois seduziu os primeiros homens. Ao colocar esta interpretação, o comentarista cai em uma grande contradição: sendo Iahweh do bem e a serpente do mal, como pode então ser atribuído a Iahweh a tarefa de amaldiçoar? Será mesmo que é possível ainda sustentar esta ideia como sendo própria do texto: Iahweh é do bem e a serpente é do mal? Outro aspecto que se repete neste comentário é a relação da serpente com a narrativa da história do Messias. Isso é uma reinterpretação do símbolo fora de seu contexto narrativo.
A Tradução Ecumênica da Bíblia faz o seguinte comentário desta segunda cena que envolve a serpente:

A serpente, o mais astucioso dos animais (‘arum 3,1), passa a ser o mais miserável deles (arur). A sua astúcia volta-se contra ela. Este versículo tem sido entendido de maneiras diferentes. Para uns, ele anunciaria uma luta de morte e sem fim entre a descendência da mulher e a serpente; este combate sem desfecho insere-se no contexto das sanções adotadas pelo Senhor. A tradução aqui adotada deixa possibilidade para esta interpretação. Segundo outros, o v. permite entrever um desfecho favorável, pois visa antes de tudo à serpente. A linhagem da serpente é atingida na cabeça, a da mulher somente no calcanhar; além disso, comer pó é sinal de derrota (Mq 7,17). O verbo aqui traduzido por atingir pode significar também‘cobrir’ (Sl 139, 11; Jó 9,17). À luz dos demais livros bíblicos, a tradição cristã freqüentemente viu neste texto o ‘Protoevangelho’ que anuncia a vitória do Messias, nascido de uma mulher, o que é sugerido já pela versão grega (“este” já que em hebraico não há o feminino de este) um indivíduo, e não a descendência, que seria “isto”). A tradição católica reconheceu assim aqui um dado importante sobre o papel da mãe do Messias.
A imagem da serpente nos remete ao confronto da soberania do Deus de Israel com divindades pagãs. A mulher diz ter sido seduzida pela serpente e esta sedução gera o fim da harmonia entre aspectos profundos da criação: homem e mulher, exterioridade e interioridade. O passo seguinte é o nome que o homem concede à Mulher. Pois somente aos animais ele havia concedido nome. Assim, perde-se a harmonia com a companheira inicial. Mas ainda assim existe uma promessa de expectativa de triunfo, de harmonização das relações. Então o texto é dramático e ao mesmo tempo aberto à esperança concedida por Deus de que o descendente da Mulher irá restabelecer o caminho. Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar
Desdemonizando a serpente já que demonizar não é intenção de Gn 3 e trazendo o texto para o seu eixo originário que consiste na batalha contra a idolatria, ou seja fim da harmonia e ocasião de expulsão do jardim, vemos que nos resta ainda responder em que sentido este é o primeiro anúncio da Boa Nova. A resposta é simples: porque Deus, mesmo em meio ao caos que há de se tornar o caminho dos homens devido à tentação de idolatria, o desejo terrível de ser Deus, dará a última palavra. O triunfo por hora foi da serpente mas chegará um momento em que a batalha que se estende pelo futuro terminará com o triunfo de quem criou o homem. E este triunfo será mediante um descendente da mulher.
A descendência da mulher esmagará a cabeça da serpente. O “ela te esmagará a cabeça” se refere à descendência e não à mulher, o texto é aberto ao futuro. Pode-se dizer que o descendente da mulher que concretamente pisou na cabeça da Serpente, foi o Messias Jesus NUMA LEITURA CRISTÃ. E a mãe desse vitorioso foi Maria Santíssima. Por conseguinte, o sentido literal pleno aponta Maria e Jesus Cristo como os protagonistas da luta decisiva contra a serpente. Eva (Mãe da vida, em hebraico) de Gn 3,15 inicia uma tarefa que só foi realizada plenamente no futuro, pois o texto sagrado nos diz que Eva foi seduzida pela serpente; ao contrário, Maria foi sempre fiel e contemplativa da palavra de Deus e daqui surge a possibilidade de leitura pós pascal do texto de Gn 3. Todavia, se esta leitura não vier acompanhada da leitura em sentido estrito, perderemos a riqueza e singularidade que o texto pode nos proporcionar.

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