O Pontifício Conselho para a Cultura, na sequência de um discurso de Bento XVI, desencadeou a iniciativa do “Átrio dos Gentios”, e, desde aí, assistiu-se a um verdadeiro florescimento de iniciativas e encontros em diversas cidades, que têm surpreendido pela sua originalidade e que tiveram uma etapa culminante no encontro do Santo Padre em Assis. De Bucareste a Florença, de Tirana a Barcelona, de Estocolmo a Palermo, de Praga a Marselha, até ao Québec e aos Estados Unidos os eventos multiplicam-se. Por vezes, também se tem verificado alguma polémica: certas formas mais agressivas de ateísmo sentem-se excluídas, acusando o diálogo de desenvolver-se só a um alto nível intelectual e com os chamados “ateus devotos” (alguns destes, por sua vez, também se têm queixado por não terem o protagonismo que gostavam). Está-se, claro, a avaliar estas críticas e a pensar numa resposta, mesmo sabendo que algumas delas são apenas provocatórias e minoritárias...
Hoje, porém, gostaria de ocupar-me de uma questão quase filológica que nasce da objeção que alguns têm colocado à oportunidade da metáfora “átrio dos gentios”. É natural que, desligada do seu fundo bíblico e judaico, a imagem cause algum embaraço. A começar pela própria ideia de “átrio”, que é um espaço exterior, como que colocado à margem. A nossa intenção é, precisamente, o inverso: queremos recuperar o valor deste símbolo afirmando que o “átrio” é um espaço livre, onde corre livremente o vento, o sol brilha e se contempla o céu, sem o necessário fechamento e autorreferencialidade que o Templo, sede do sagrado, e o Palácio, sede da laicidade, impõem.
A imagem tem uma história que muitos já conhecem. Procuremos repropô-la num detalhe que, contudo, nada tem de secundário. O templo construído por Herodes, a partir dos anos 20 a.C. e concluído muito tempo depois da sua morte, ocorrida no ano 4 a.C. (de facto, em Jo 2,20 fala-se dos 46 anos que foram necessários para levantar o edifício), compreendia, além do santuário propriamente dito, quatro pátios ou átrios: dos sacerdotes, dos israelitas, das mulheres e dos gentios, segundo as diversas classes rituais. O mais afastado era reservado aos gentios, às gentes, aos “pagãos”, que aos olhos dos hebreus, de então, eram automaticamente equiparados àqueles que nós hoje chamamos ateus, mesmo se na verdade veneravam os seus deuses, como o próprio São Paulo o havia reconhecido atravessando as ruas de Atenas («Atenienses, vejo que em tudo sois muito religiosos: passando e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei também um altar com a inscrição: a um deus desconhecido» - At 17,22-23).
Segundo a descrição do historiador Flávio Josefo, na sua obra “Guerra Judaica”, uma balaustrada da altura de três cúbitos (cerca de 1,40m) - a Mishnah, depositária das antigas tradições judaicas, refere essa altura como sendo de dez palmos (0,75m) - separava aquele átrio da restante área do templo. Sobre ela, escreveu Josefo: «estavam colocadas a igual distância placas de pedra (”stêlai”), algumas escritas em carateres gregos e outras em latinos, que explicavam a lei da pureza, e que nenhum estrangeiro entrasse para o lugar sagrado» (V,5,2). Eis o detalhe em torno ao qual gostaria de deter-me brevemente: estas placas de pedra com a proibição de cruzar a balaustrada que fazia de fronteira entre o sagrado e o profano.
Em 1871, o arqueólogo francês Charles Simon Clermont-Ganneau descobriu, no setor Norte da atual esplanada da mesquita em Jerusalém, uma placa de calcário que media 56 cm de altura, 86 de largura e 37 cms de espessura, com algumas fissuras justificadas talvez pela destruição do templo, acontecida no ano 70 d.C. Essa placa está hoje no Museu do Antigo Oriente de Istambul. Em 1935, sobre o lado Este da mesma esplanada, veio à luz um peça semelhante que confirma a precedente e que está depositada no Museu Rockfeller de Jerusalém. Mas voltemos à primeira. Ela, em sete linhas, contém o seguinte interdito formulado em grego: «Nenhum gentio (”alloghené”) ultrapasse a balaustrada que delimita o templo. Quem o tentar, buscará para si próprio a condenação de morte». Curioso é o termo que define o «gentio», “alloghenés”, desconhecido do grego clássico e utilizado apenas no grego judaico e cristão. Nesse sentido, por exemplo, aparece no Evangelho de Lucas (17,18) para definir o samaritano leproso que regressa para agradecer a Jesus depois da cura, diferentemente dos outros nove hebreus também sarados. Por outro lado a severidade da pena em caso de violação colide com a liberalidade da própria Torah que no Levítico recolhe esta norma: “Todo o homem, israelita ou estrangeiro (”gher”) que peregrine entre vós, e que oferecer holocausto e sacrifício, deve trazê-lo à entrada da tenda da congregação” (Lev 17,8-9). Muitos estudiosos pensam que um interdito assim radical fosse fruto do rigor dos escribas judaicos do Templo, preocupados pelo excesso de estrangeiros que acediam a Jerusalém durante a época greco-romana, e que reagiam também à política herodiana que, neste particular, era muito liberal. Semelhantes interditos, porém, vigoravam também noutros sistemas sagrados e em templos do Próximo Oriente e da própria Grécia.
Mas no caso do templo de Jerusalém há uma questão que se levanta: as autoridades romanas de ocupação teriam dado aval a uma tal prática que, à primeira vista, colidia com a sua jurisdição e lesava os seus interesses?
Estando em Flávio Josefo dir-se-ia que sim, pois o historiador declara ter lido, ele próprio, aos hebreus assediados em Jerusalém este édito de Tito, o comandante do exército romano e futuro imperador: “Não fostes vós que colocastes esta balaustrada diante dos vossos lugares santos? Não fostes vós que colocastes a intervalos as estelas incisas com letras gregas e nossas, para proibir que alguém cruzasse aquele parapeito? Não vos concedemos nós permissão de dar a morte àqueles que o ultrapassassem, mesmo se se tratasse de um romano?” (Guerra Judaica 6,2,4). Reconhecia-se, portanto, a competência para emitir uma imediata e automática sentença capital contra quem tivesse transgredido aquele muro de fronteira entre sacro e profano, um ato que a nós parece desproporcionado, mas que na verdade correspondia a uma sensibilidade muito viva quanto à pureza ritual. O poder imperial romano quereria evitar ocasiões de conflito, pelo menos neste âmbito, com um povo tradicionalmente hostil às forças da ocupação.
Tudo o que descrevemos até agora encontra-se confirmado no episódio dos Atos dos Apóstolos que tem como protagonista São Paulo, acusado de “ter introduzido gregos no templo, profanando o lugar santo”, dado que estava em companhia de um certo Trófimo de Éfeso e, por isso, suspeito de ter acompanhado o apóstolo na área sagrada (21,27-30). Mas a figura de Paulo torna-se decisiva por uma bem diversa conceção daquele “átrio”, quando escreve aos cristãos de Éfeso (Ef 2,14-15): «Cristo é a nossa paz, o qual de dois povos separados fez um só povo. E derrubando o muro de separação, na Sua própria carne, desfez a inimizade...». A «inimizade» era a realidade implícita nas placas daquela balaustrada que dividia pagãos e hebreus, uma hostilidade que Cristo cancelou.
O novo símbolo do “átrio dos gentios” pretende continuar a eliminar esta separação num encontro de paz, de diálogo e de procura comum.
Este artigo integra o número 17 do "Observatório da Cultura" (abril 2012).
Cardeal Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Il sole/24 ore, 11.12.2011, SNPC | 08.05.12
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