“Vinte e nove dias de alegrias e um dia de tristeza”. Esta afirmação veio do coração de uma professora aposentada, ainda jovem, em referência ao seu trabalho educacional, de muitos anos, na condução de crianças e jovens no seu processo de educação básica. Na verdade, contou a professora, este era um dito corrente entre as demais professoras em referência ao dia do pagamento e àqueles outros dias da prazerosa labuta educacional nas escolas. A alegria de ser uma família. O encantamento nascido da participação construtiva no desabrochamento de vidas. O gosto de cuidar da vida de cada educando, transmitindo ensinamentos e experiências, como o pedreiro que faz o alicerce de construções a serem edificadas. O contexto da conversa abordava a estranheza que causa ao ver, hoje, a predominância de um interesse até doentio que o salário a receber desperta no coração das pessoas. Não se questionava, absolutamente, o direito da própria remuneração, digna e adequada para o sustento da vida, fruto do próprio trabalho. Esta é uma luta sem fim pedindo comprometimento de todos para que a justiça seja feita, princípios equânimes sejam estabelecidos, a igualdade seja alcançada e a dignidade humana respeitada.
A cultura contemporânea permeia, no entanto, a compreensão humana com uma ligação intrínseca do gosto pelo que se faz e o valor do que se faz, tão simplesmente, com o tamanho do salário que se recebe. Este desafio está enfileirado entre as concepções que hospedam o sentido de valor e importância social na marca do carro, na grife das roupas, no tamanho e no luxo da casa, entre outras coisas. Bem assim, nos títulos que geram deferências ou mesmo no sentimento de valor que se subordina ao cargo que se ocupa, criando aquela incapacidade de ir adiante pelo apego cultivado. O problema se põe quando se enjaula o trabalho que se faz nos quadros, tantas vezes estreitos, do salário que se ganha. É estreiteza mesmo quando o salário é alto. Estreiteza porque se perde de vista o sentido nobre e edificante do trabalho que se faz. Seu valor não é o salário, resguardando o sentido e as proporções intocáveis da justiça. Mas, o bem que se faz é a vida que se edifica, a sociedade que se constrói, e a criação que se recria em cada gesto bom e em cada atuação profissional competente. No entanto, verifica-se, lamentavelmente, uma mentalidade que cultiva o trabalho quase só pelo salário que se ganha. É inquestionável que o trabalhador é digno do seu salário que deve ser digno. Digno aqui entendido como justo e nas proporções do sustento de sua vida e dos seus compromissos para a manutenção da vida daqueles que dele dependem. É bom ter isso presente como valor inquestionável para não se perder o foco do que é nobre e verdadeiro, e imprescindível no dito da professora.
Isto é, a alegria dos vinte e nove dias e a tristeza de um dia. A alegria pesando mais do que a tristeza. Esta alegria é testemunho do sentido do ‘dom de si’ que não pode ausentar-se da compreensão do trabalho que se faz e da atuação profissional que se tem. Vale a advertência na medida em que se percebe que esta compreensão do ‘dom de si’ está comprometida. Um comprometimento que abre buracos enormes impedindo o alcance de uma sociedade justa e fraterna. Só o sentido autêntico e profundo do ‘dom de si’, em tudo e para todos, gera as condições que favorecem a solidariedade, cultivam o gosto gostoso do que se faz, desvinculado do salário que se ganha. É a cultura do salário, enquanto interesse doentio por ter mais e mais dinheiro, comprometendo a dinâmica do ‘dom de si’. Este comprometimento destrói de maneira absurda o sentido da gratuidade e a capacitação para a pertença, indispensável em qualquer funcionamento institucional e no convívio diário, enquanto possibilidade da experiência da verdadeira e duradoura alegria. Não é fácil desvincular, na atualidade, o encontro da alegria verdadeira daquele sonhado e ambicionado salário. Uma ilusão que não está no foco da vida que há de ser dignamente sustentada, alimentando ambições, envenenando os corações com a propensão a artimanhas e manipulações corruptas para se conseguir favorecimentos e vantagens desejadas. Este é um comprometimento ético.
Cada pessoa há de medir, sinceramente, este comprometimento no seu coração. Há de se fazer uma avaliação no mais recôndito de sua própria consciência. Basta uma pergunta, considerando o trabalho que se faz, o salário que se recebe e o gosto pelo que faz, revelando ou não empenho sem medidas, abertura ao diálogo, cooperação mútua, fidelidade a princípios e a pessoas. Aquela mulher pobre que recebia os trinta reais da bolsa-família, cada mês, ao devolver, por honestidade, o cartão do saque, em razão de uma filha ter conseguido emprego, mesmo sem saber o salário a receber, indica o que é preciso ter no fundo do coração para não comprometer o indispensável ‘dom de si’ no que se faz. Valem: amor e solidariedade!
Fonte: CNBB
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte
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