segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Chave de leitura para o Livro do Apocalipse - Parte I







O Apocalipse, com muita certeza, é o livro que mais abusos tem sofrido no decorrer da História e, como decorrência, é o livro que tem despertado reações sempre as mais antagônicas possíveis. Há aqueles que o amam por seu conteúdo, beleza, e imagens fortes. Por outro lado, outros sentem um verdadeiro “pavor” do livro por não compreenderem-no e devido a estudos ou sermões ouvidos que revelavam uma perspectiva de análise equivocada.
Obviamente meu objetivo não é oferecer uma visão sui generis do livro, mas procurar estudá-lo de modo coerente com ele mesmo, respeitando sua mensagem e seu modo de transmiti-la. Além disso, meu desejo ao estudá-lo é fazer sua integração com o resto do Novo Testamento e a vida da igreja. É fazer a igreja lê-lo, entendê-lo e amá-lo como o restante dos livros da Bíblia. Isso implicará numa “desmistificação” do livro, o que procurarei fazer nas páginas seguintes.
Os estudos que se seguem não são um “comentário” ao Apocalipse, mas uma série de “estudos” onde, por questão de espaço e de tempo, alguns pormenores foram deixados de lado. Isso não significa um estudo superficial. Meu objetivo através destes estudos é fornecer numa série de aulas uma visão e interpretação do Apocalipse que permitam que aqueles que participaram possam ler este livro com mais proveito em suas casas.

INTRODUÇÃO

Apocalipse! Talvez o livro menos lido em todo o Novo Testamento. É provável que a maioria dos cristãos nunca tenham lido esse livro, ou, se o leram, o fizeram apenas nos três primeiros capítulos. Possivelmente esse desprezo para com o Apocalipse deve-se à visão que as pessoas têm dele. 

1. APOCALIPSE - O ILUSTRE DESCONHECIDO DO NOVO TESTAMENTO.

Por que esse título? Porque é assim que a maioria de nós vê tal livro. Embora não tendo lido o Apocalipse, ou lendo pequenos trechos dele, grande parte das pessoas crê que ele fala do fim do mundo, com estrelas e prédios caindo sobre suas cabeças. Além disso, ele falaria do grande sofrimento pelo qual os cristãos passarão, e isso não é nada bom para qualquer pessoa, e além do mais, esse dado estaria em contraste com a vida vitoriosa da qual o resto do Novo Testamento fala. O Apocalipse também é um vilão por que ele fala de Dragão, Besta, Falso Profeta, 666 como número da Besta, dando a impressão que todos eles um dia, de modo inesperado, surgirão correndo atrás dos cristãos para matá-los, e isso gera pânico em muitas pessoas.

A interpretação popular também ajuda a confundir o entendimento do livro. Uma interpretação meramente futurista, alienante e de extrema direita é muito comum. Nesse sentido, o Apocalipse falaria apenas do futuro, sem se importar com o presente, sendo que a consequência disso seria a alienação profunda gerada naqueles que o leem. É comum ver esse tipo de interpretação. O livro também serviu para justificar posturas politicamente corretas (?), que viam o Apocalipse falando que ex-União Soviética juntamente com a China (Gogue e Magogue - Ap 20,7-8), como bloco comunista e diabólico, combateriam os cristãos democráticos e capitalistas, os quais, entretanto, venceriam com a ajuda de Cristo (obviamente essa visão foi difundida por intérpretes norte-americanos).  Por essas e outras razões, por quê um cristão leria esse livro? 

2. QUE LIVRO É ESSE?

O ponto de vista acima encontra sua razão na falta de entendimento do gênero literário ao qual o Apocalipse pertence. Na realidade, Apocalipse é um gênero literário. O livro faz parte de um conjunto de obras chamado de APOCALÍPTICA. Vários outros livros apocalípticos, semelhantes ao que estamos estudando foram escritos: 

• I Enoque, escrito cerca de 200 a.C.
• Livro do Jubileu, por volta do 2o. século a.C.
• Testamento de Moisés, começo do 1o. século d.C.
• 4 Esdras, final do 1o. século d.C.
• Apocalipse de Abraão, 1o. ou 2o. século d.C.
• Daniel 7-12.
• Marcos 13 (paralelos em Mt 24 e Lc 21).

3. PARA QUEM O LIVRO FOI ESCRITO E QUANDO?

O Apocalipse é um livro pastoral escrito às sete igrejas da Ásia Menor (região ocidental da atual Turquia) - 1,4. Esse dado é importante, pois mostra-nos que o livro não é um documento caído do céu, atemporal. Para entendê-lo, precisamos compreender primeiramente a mensagem que tinha para seus destinatários. Os capítulos 2 e 3 mostram-nos os problemas que essas comunidades passavam, o que justifica o envio do livro para elas.

Até algum tempo atrás havia um consenso quanto a afirmação de que os cristãos na Ásia estavam passando por perseguições e que o livro foi enviado nesse contexto. De fato, o livro fala de perseguição: o próprio João está exilado numa colônia penal em Patmos devido a perseguição religiosa - 1,9; os cristãos estão passando por tribulações: 2,9-10; morte - 2,13; 6,9. Porém hoje questiona-se que houvesse uma perseguição de caráter geral aos cristãos. O que existiria seriam problemas localizados. Seguindo este ponto de vista, o escritor veria nesses problemas esporádicos sinais de um grande confronto que estava para se dar: Estado Romano x Igreja. 

O Apocalipse teria, então, a função de servir como um alerta para despertar os cristãos para a realidade de que esse confronto estava começando, embora alguns não concordassem com tal postura. Dentro dessa perspectiva este livro é altamente relevante para nós. Pode ser que convivamos bem com a sociedade, com as estruturas, etc. Mas isso não revelará um certo conformismo de nossa parte? O Apocalipse serve para nos questionar em nossas posturas.

O livro surgiu quando o imperador Domiciano , que reinou de 81 a 96 d.C., começou a exigir que todos os súditos dentro do império o adorassem como deus. Isso não constituiu problema para a população, visto que estavam acostumados com um culto politeísta, e adorar um deus a mais não seria problema. Para os cristãos não foi assim. Até então a tradição cristã era de interceder pelas autoridades - 1 Tm 2,1-2; submeter-se às autoridades - Rm 13,1-7; honrar ao rei - 1 Pe 2,17. Mas agora a situação mudara. Os cristãos não podiam dividir sua lealdade a Jesus Cristo. Portanto, ao não prestar culto ao imperador, eles estariam sendo acusados de impatriotismo. Isso foi mais intenso principalmente na Ásia Menor, onde o culto ao imperador desenvolveu-se de modo mais acentuado. 

O confronto estava apenas começando. Para alguns, por outro lado, ele não existia. Esses cristãos achavam que podiam adorar a Jesus e ao imperador. Eles são criticados duramente no Apocalipse. Aqui podemos ver a ligação entre o Estado e a religião. Será que hoje os dias são diferentes? Não estaremos “adorando” religiosamente nosso mundo moderno, secular, tecnológico, consumista, etc, etc?

4. EXISTE UMA ESTRUTURA NO APOCALIPSE?

Embora seja muito difícil de se chegar a um consenso, há alguns dados que podem ser observados. Todos os estudiosos admitem que o livro tem uma forte ênfase sobre o número sete. Há: 

• sete igrejas: capítulos 2 e 3.
• sete selos: capítulo 6 e 8,1-6.
• sete trombetas: 8,7-9,21 e 11,15-19.
• sete taças: capítulo 16.
• sete espíritos: 1,4; 4,5.
• sete bem-aventuranças: 1,3; 14,13; 16,15; 19,9; 20,6; 22,7.14.

Por enquanto podemos dizer que o livro desenvolve-se, em termos estruturais, em torno do número sete. Obviamente esta é uma visão simplista, e onde ela não puder ser considerada, outras explicações serão fornecidas.


5. O APOCALIPSE COMO PROFECIA - O QUE SIGNIFICA ISSO?

Já foi visto que, de acordo com o próprio nome do livro (Apocalipse = “revelação”- 1,1), o escritor procura apresentar o real sentido da vida cristã e do sofrimento através de uma “revelação” de Jesus Cristo. Mas o escritor também se apresenta como profeta (22,9) e caracteriza seu livro como profecia (1,3; 22,19). Qual a importância disso para o entendimento do texto?

A importância é muito grande, visto que dependendo da definição que temos de profecia, será o tipo de interpretação que faremos do livro. Hoje em dia é muito comum o conceito de profecia como “predição do futuro”.  Mas será que é isso que o escritor do Apocalipse tem em mente quando chama seu livro de “profecia”? O escritor do Apocalipse baseia-se no conceito vétero-testamentário de “profecia” para definir sua atividade. Nesse sentido, profecia é: 

• Uma mensagem recebida diretamente de Deus. Essa era a principal característica dos verdadeiros profetas em relação aos falsos (Jr 23,18-22). Eles entravam no “conselho” do Senhor. Esse conselho é composto pela Trindade e os seres celestiais que estão na presença de Deus e pode ser visto nas cenas dos capítulos 4 e 5 do Apocalipse. É ali que João, como profeta, se encontra (4,1). Portanto, o profeta é, fundamentalmente o que recebe “de Deus” sua mensagem. Por isso, ela é importante e não pode ser alterada (22,18-19). Além de provir de Deus, a profecia nos tempos neotestamentários é centralizada em Jesus (19,10). O espírito, o centro da profecia é o “testemunho de Jesus”. Ela visa fornecer uma mensagem sobre Jesus Cristo, e não “satisfazer” nossa curiosidade quanto ao futuro.
• Uma mensagem que aponta para a vinda final de Jesus Cristo. Ela segue aqui a perspectiva pela qual o Velho Testamento era interpretado: cristologicamente, isto é, vendo nele predições que apontavam para Jesus Cristo (Lc 24,44). O Apocalipse segue essa linha apresentando uma visão “cristológica” da história, afirmando que Jesus controla a história e indicando que os eventos relativos a sua segunda vinda “estão próximos” (1,3). Na realidade, para o Novo Testamento, desde que Jesus encarnou e ressuscitou, ele “já está chegando”. É por isso que o escritor pode falar do julgamento sobre Roma como algo muito próximo. Porém o livro não fala de acontecimentos “particulares”, mas de ações de Jesus que se darão como consequência de sua segunda vinda.
• Uma mensagem que chama ao arrependimento. Essa é uma das principais características da profecia. Na realidade, ela é uma palavra que tem uma forte ênfase no “presente”, no comportamento do povo. Para criticar a prática pecaminosa, o profeta volta-se para o “passado” e encontra nele as orientações de Deus dadas no Pentateuco (quando o profeta vive nesse período), ou nas palavras de Jesus (quando o profeta é cristão). A partir daí faz advertências para que se abandone a prática do pecado, pois se não houver arrependimento, Deus irá punir tal comportamento no “futuro”. Portanto, a profecia fala do futuro como consequência da vida do povo no presente. É nesse contexto que o profeta fala às igrejas nos capítulos 2 e 3 chamando-as ao arrependimento e advertindo-as quanto ao futuro (2,5.16. 21-23; 3,3).

Após essas considerações sobre a profecia no Apocalipse, podemos ver por que o seu autor usa o gênero apocalíptico e refere-se ao livro como profecia. Seu objetivo através da apocalíptica é chamar a atenção para as tribulações que estão por vir e fornecer fortalecimento e conforto aos que sofrem. Para dar autoridade a essa mensagem, dá a ela a categoria de profecia. 

Visto que a profecia não pode ser vista como um mero “narrar de eventos futuros”, estando, pelo contrário, mais ligada ao presente, podemos, portanto, concluir que o Apocalipse não é um livro que narra apenas acontecimentos “futuros”. Essa constatação permite-nos agora buscar uma visão que substitua essa abordagem futurista que se faz ao livro.

6. APOCALIPSE - UMA ESTRUTURA NÃO CRONOLÓGICA.

O Apocalipse não tem uma sequência cronológica, onde um fato vem “depois” do anterior até chegar à segunda vinda de Jesus Cristo. Pelo contrário, o livro fala do conflito eminente com o império, e procura dar forças para o povo cristão ser fiel e, ao mesmo tempo, é uma palavra de condenação ao império romano e seu imperador que exige ser adorado como Deus. O autor desenvolve essa mensagem usando um recurso retórico chamado de “paralelismo progressivo”. Esse recurso é usado após a “introdução” (capítulo 01) e a apresentação dos “destinatários” (capítulos 02 e 03). Nele, o escritor apresenta basicamente a mesma cena, que representa o passado, presente e futuro, repetidas vezes, sempre acrescentando um dado para desenvolver o tema e aumentar o clímax até o final do livro. Vejamos como isso se dá na estrutura do livro: 
 
1. Introdução (capítulo 01).
2. Destinatários. As Sete Igrejas da Ásia Menor (capítulos 2 e 3).
3. Seis visões desenvolvendo o “paralelismo progressivo” (4,1-22,5).

• Abertura dos sete selos (4,1-7,17).



Aqui encontra-se o “passado” (5,6-7), representando a exaltação de Jesus Cristo após a ressurreição, o “presente” (6,9-11), apresentando os mártires cristãos que estavam sendo mortos, e o “futuro” (6,12-17), revelando a vinda de Jesus Cristo para julgar os opressores de seu povo (6,15-17).
• Toque das sete trombetas (8,1-11,19). Temos o “presente” (8,3-4), nas orações dos santos, e o “futuro” (11,18) na afirmação de que “chegou o dia da ira e o tempo de serem julgados os mortos”.
• A identidade do imperio romano e a perseguição dos cristãos por ele (capítulos 12-14).
É claro na passagem: o “passado” (12,5), através do nascimento de Jesus, o “presente” (12,17), na perseguição da igreja pelo dragão (Satanás), e o “futuro” (14,14-20, compare com Mt 13,24-30.36-43).
• Sete taças (capítulos 15-16). O “futuro” (16,20),é descrito através da imagem do aniquilamento dos elementos da natureza (= 6,14).
• A derrota de Roma e da Besta (capítulos 17-19). O “futuro” (19,11 e 13) pode ser observado através da pessoa de Jesus Cristo que vem para lutar contra a Besta (19,20).
 • O aprisionamento do Dragão e a vitória da Igreja (capítulos 20-22).
O aspecto “passado” é notado através da referência ao aprisionamento de Satanás (20,2), que se deu na encarnação de Jesus Cristo (Lc 11,20-22), e o “futuro” está claro na narração do juízo (20,11-14).
4. Conclusão (22,6-21).

Além dos dados acima que mostram o paralelismo progressivo, há um outro recurso para mostrar o desenvolvimento do clima de tensão do livro. São as palavras ira e cólera de Deus. A “ira” aparece em 6,16.17; 11,18, e “cólera” em 14,19; 15,1.7; 16,1. Elas vem juntas para enfatizar o sentimento de Deus em 14,10; 16,19 e 19,15.

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